Uma mulher violada pode continuar a dançar

Dorothée Munyaneza sobreviveu ao genocídio do Ruanda, mas ainda o traz no corpo 24 anos depois. Unwanted, o espectáculo em que dá a palavra às vítimas das violações sistemáticas então ocorridas, e aos mal-amados filhos que delas resultaram, e que proximamente veremos em Portugal, é a sua maneira de dizer que nunca deixará de testemunhar.

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Dorothée Munyaneza foi ao Ruanda recolher as histórias que agora interpreta em Unwanted Christophe Raynaud de Lage

Dos cerca de dois a cinco mil bebés que a Human Rights Watch calcula terem nascido das violações sistemáticas ocorridas ao longo dos três meses que durou o genocídio do Ruanda, e que hoje, se tudo tiver corrido um pouco melhor do que se esperaria atendendo à brutalidade com que começou, andarão pelos seus 23 anos, Dorothée Munyaneza terá encontrado uns 70. Não andava exactamente atrás deles quando começou a preparar Unwanted, o segundo espectáculo em que remexe na tremenda ferida da matança a que sobreviveu quando tinha apenas 12 anos (800 mil mortos em apenas cem dias), e com o qual pretendia aprofundar a sua imersão nesse passado de trauma e de sangue depois da avassaladora aventura autobiográfica que fora, em 2014, Samedi Détente. Os filhos, conta-nos em Brest, onde no fundo esta história começou, por causa de um documentário sugerido por Nadège Loir, da direcção do festival DañsFabrik, vieram depois das mães — depois de muitas manhãs e de muitas tardes a ouvi-las contar como lhes cresceram na barriga os bebés dos seus próprios violadores. 

Radicada em Marselha depois de décadas de exílio em Londres, esta artista cujo trabalho resiste a decidir-se entre a dança, a música e a spoken word foi procurar essas mulheres ao fim do mundo onde refizeram as suas vidas, quase sempre totalmente sozinhas, na mais extrema pobreza, em alguns casos ainda a refazerem-se das doenças sexualmente transmissíveis que, juntamente com essa mal-amada descendência, as milícias Interhamwe lhes atiraram para o colo antes de passarem à violação seguinte. “Na primeira viagem que fiz ao Ruanda para me documentar para este espectáculo, passei o tempo todo com essas mulheres; era o primordial. Mas de cada vez que elas me falavam dos filhos eu não conseguia deixar de imaginar como eles seriam”, conta ao PÚBLICO na manhã seguinte à passagem de Unwanted pelo DañsFabrik, que este ano encaixou no seu programa uma alargada foto de família da dança portuguesa com curadoria de Tiago Guedes, director do Teatro Municipal do Porto (TMP). “É um lugar terrível para se crescer, esse em que sabes que o teu pai — ou os teus potenciais pais, porque em muitos casos elas foram violadas por variadíssimos homens — exterminou toda a família da tua mãe.” 

É um lugar para se crescer de dedo apontado a alguém que nunca se saberá exactamente quem é. E agora que já não se trata de amplificar as suas próprias palavras, e de apontar o dedo ao resto do mundo que em 1994 estava demasiado entretido a fazer sabe-se lá o quê para se incomodar com um genocídio no Ruanda (até porque em África, como viria a dizer François Mitterrand nesse Verão, “um genocídio não é muito importante”), Dorothée Munyaneza pode amplificar as palavras destes rapazes e destas raparigas em que o Ruanda vê até hoje literalmente reencarnado um acontecimento que preferiria esquecer: “Por tua causa fui espancado, papá. Por tua casa, a minha mãe foi tão maltratada, papá. Quantos irmãos e quantas irmãs tenho por tua causa, papá? Aparentemente sou colérico, aparentemente sou irascível — como tu, papá.”

Por cá, onde o espectáculo se fará apresentar a 1 e 2 Fevereiro de 2019 no Teatro Municipal do Porto, que há um ano acolheu já Samedi Détente, palavras como aquelas de que Dorothée Munyaneza se faz porta-voz talvez possam encaixar-se numa história colectiva que agora começa também a deixar-se contar, a dos filhos que os soldados portugueses mobilizados para a Guerra Colonial deixaram em África, e das múltiplas formas de abuso, dominação ou simples abandono que essa história, assim como a narrativa mais genérica das relações sexuais entre colonizadores e colonizados, reiteradamente assumiu. 

“Lamentavelmente”, admite a autora de Unwanted, “esta é uma história universal”. A pesquisa para a peça, de resto, levou-a da República Democrática do Congo à ex-Jugoslávia, do Chade à Síria. Mas, como a sua própria biografia, este espectáculo começa e acaba no Ruanda, onde espera poder apresentá-lo o mais brevemente possível: “Estamos a trabalhar nisso neste preciso momento. Levámos o Samedi Détente a Kigali e a Butare e foi incrivelmente emocionante — como se todas as apresentações anteriores tivessem sido apenas uma preparação para esse momento. Seria maravilhoso que estas mulheres e estes agora jovens adultos pudessem ver como é poderoso o material que me ofereceram. E como, tendo-me habitado a mim, esse material passou a habitar também em centenas ou milhares de pessoas por todo o mundo.”

Uma hiena para amamentar

Quando saiu de Kigali com a família, Dorothée Munyaneza levou uma cassete com os hits americanos que teriam feito da sua adolescência uma festa, se não fosse o genocídio; na verdade, contava em Samedi Détente, durante os meses em que se refugiou na floresta, o mais longe possível das catanas e do sangue, ouvir essa cassete antes de adormecer foi a maneira que encontrou para continuar a ter 12 anos, apesar de tudo.

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Dorothée Munyaneza vive em Marselha depois de um exílio em Londres DR

No seu caso, tornar essa história pública, e em certo sentido espectacular, não foi o fim de um processo, bem pelo contrário. “Em Samedi Détente era eu — a minha infância, a minha adolescência, a minha vida — que estava em questão, mas ao longo de todo o percurso fui-me perguntando que outras palavras eu seria capaz de trazer para o palco. A certa altura, comecei a interessar-me pela violência imposta aos corpos das mulheres — ou melhor, aos corpos nascidos mulher —, nomeadamente em períodos de conflito, quando a violação é usada como arma de destruição maciça, destinada a anular todo um corpo social, emocional. É o crime perfeito, porque tende a silenciar a vítima, a mantê-la refém do silêncio, da vergonha, da humilhação”, aponta. Algures durante “essa viagem íntima”, um documentário “muito difícil de encontrar”, L’homme qui répare les femmes (2015), de Thierry Michel, sobre o ginecologista e obstetra congolês, Denis Mukwege, começou a encaminhá-la na direcção de Unwanted: “Este homem extraordinário dedicou a sua vida a operar os órgãos genitais mutilados de centenas e centenas de mulheres e de miúdas vítimas de violações horrendas no Leste da República Democrática do Congo, onde as guerras se sucedem umas às outras. É provavelmente o pior lugar do mundo para se ser mulher. Mas tem havido outros: a ex-Jugoslávia dos anos da guerra, a Síria hoje. E, claro, o Ruanda.”

De novo, foi para lá que se virou. “Num tema tão delicado e tão violento”, diz, “não podia haver barreiras linguísticas, nem o obstáculo de um tradutor”. Ainda em França, dois outros documentários, Mauvais souvenir (2016), de Marine Courtade e Christophe Busché, e Rwanda, la vie après — Paroles de mères (2014), de Benoît Dervaux e André Versaille, ajudaram-na a identificar a primeira pessoa a quem tinha de telefonar, Godeliève Mukasarasi, fundadora de uma organização não-governamental que logo após o genocídio construiu uma plataforma onde as mulheres que agora ouvimos em Unwanted puderam e podem ainda encontrar-se, verbalizar o trauma, partilhar experiências de sobrevivência. E contar como foi difícil, às vezes mesmo impossível, amar — ou sequer amamentar — os filhos dos homens que minutos antes de as violarem lhes assassinaram toda a família: “Eu amamentei uma hiena. A minha pobre pequena hiena era colérica. A minha pobre pequena hiena era irascível. A minha pobre pequena hiena mordia.”

Ainda de pé

Munida de um gravador, foi ter com essas mulheres, e em especial com aquelas que permaneceram no campo, onde o acompanhamento médico e psicológico foi sempre infinitamente mais precário e por isso o discurso acerca do que aconteceu lhe parecia poder ser “mais virgem”. À chegada, apresentava-se, explicava onde cresceu e o que faz hoje, e depois começava sempre pela mesma pergunta, em kinyarwanda (a língua doce que em Unwanted ouvimos a descrever o inferno, e que munida agora de um microfone Dorothée Munyaneza vai traduzindo em tempo real): conseguiu aceitar-se? “É verdadeiramente o que me assombra: como é que te aceitas depois de teres sido violada e de teres um bebé do teu carrasco, depois de toda a tua comunidade te marginalizar por teres tido o filho de um assassino, que ainda por cima se parece com ele? Como é que voltas a endireitar a tua coluna vertebral depois de teres sido arrastada pelo chão, mutilada, de as tuas entranhas terem ficado a apodrecer?”, diz.

Seria material demasiado tóxico, demasiado terminal, se além dos depoimentos em que estas 60 mulheres (uma pequeníssima amostra das 100 a 250 mil que se calcula terem sido violadas entre Abril e Julho de 1994) explicam que tiveram “direito a tudo”, choques eléctricos, cassetetes na vagina, Dorothée Munyaneza não tivesse também trazido as provas de que houve uma vida depois: “Vi-as a andar, a falar, a cantar, a dançar. Vi como se mantêm de pé. E como faziam questão de mudar para a sua melhor roupa sempre que lhes perguntava se as podia fotografar. Tudo isso está na peça.”

Tal como Samedi Détente, Unwanted , que se estreou em Julho passado no Festival de Avignon, construiu-se a partir do contacto com histórias tenebrosas, mas não é uma história tenebrosa. Regressada do Ruanda, Dorothée Munyaneza sentou-se com o compositor Alain Mahé, que mais uma vez foi “um parceiro precioso”, ouviu muitas vezes a Sinfonia nº 3 de Henryk Górecki, e encomendou ao artista plástico e militante anti-apartheid Bruce Clarke a enorme escultura de chapa ondulada, como os tectos das casas do Ruanda, que agora domina o palco — uma espécie de super-mulher, como todas as que Godeliève Mukasarasi lhe apresentou. E, sobretudo, encontrou na cantora afro-americana Holland Andrews a “multiplicidade de vozes” de que precisava para fazer desta peça um coral feminino. “Tinha necessidade de ter todas estas vozes, as dela, as delas, ao lado da minha. Somos só nós, não podia haver homens no palco. De novo testemunhamos, mas agora testemunhamos todas juntas — na esperança de que os espectadores também se tornem testemunhas. Temos circulado muito e fico felicíssima ao ver que a palavra se espalha.”

Espalhemos então a palavra: uma mulher violada pode continuar a dançar. No seu melhor vestido de domingo, como se cada mais um dia de vida fosse um dia de festa. 

O PÚBLICO viajou a convite do Teatro Municipal do Porto

 

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