Um amor silenciado

Romance em que a história familiar se assemelha à história de um país: os mistérios, as tragédias, os silêncios, os heróis que viveram na sombra.

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Cisneros leva o leitor a reflectir sobre o peso das histórias familiares que subsistem como estigma DR

Há poucos anos, o nome do escritor peruano Renato Cisneros (n. 1976) afirmou-se nas letras em castelhano com a publicação do romance La Distancia Que Nos Separa (ainda inédito em português); as razões foram várias: para além da qualidade literária, impressionou a coragem de a personagem do romance ser “Gaucho” Cisneros, um poderoso general de direita, peruano, com todas as suas taras e despotismo. “Gaucho” Cisneros é pai do autor, e como numa longuíssima sessão de psicanálise, num romance catártico, o filho faz a necessária reconciliação com o pai.

No romance que se lhe seguiu, este Deixarás a Terra, o escritor retrocede ainda mais no tempo — aos anos da independência do Peru — para contar a história do clã Cisneros e desmitificar a glória sobre o seu apelido. Investiga a história familiar, tentando desatar nós, rever as histórias ouvidas dos tios velhos (que eram quase sempre excertos, deixando uma parte oculta), desemaranhando fios narrativos que estiveram escondidos de todos durante quase dois séculos. Parece, com isto, querer tratar, ou aliviar (como de certa forma fizera no romance anterior) o peso do que se poderia chamar de “inconsciente familiar” — uma espécie de crença de que as nossas vidas podem ser influenciadas pelas histórias ocultas, ou mal contadas, dos nossos antepassados — não as carregando, assim, como um lastro do passado que de forma inconsciente influenciará o nosso futuro. Com este livro, Cisneros parece querer levar o leitor a reflectir sobre o peso de certas histórias familiares que subsistem como um estigma.

A história começa com Nicolasa Cisneros, tetravó do narrador, que esconde a sua relação com o padre Gregorio Cartagena, corriam os anos 1820 e o Peru estava perto de declarar a sua independência da coroa espanhola. Na manhã de um dia de 2013, o narrador e um tio, vão ao cemitério, em Lima, tentar descobrir se era ou não verdade, que a tetravó estava sepultada ao lado do padre. Confirmam: “Nicolasa e Gregório, num último gesto justiceiro, reservaram tumbas contíguas para partilhar a eternidade numa proximidade que lhes fora proibida em vida.” Tiveram sete filhos bastardos, pois o padre — figura eminente da fundação da república peruana — não podia, ou não queria, assumi-los. Assim viveram um amor de cinquenta anos.

A partir desta confirmação da existência das campas, o narrador procede a longas investigações históricas e familiares, e recua ao momento em que o padre Gregorio avista pela primeira vez a jovem Nicolasa: “Fora fulminante. Ficara estático e durante vários segundos não conseguira desviar os olhos dela. (…) encandeado pelos seus olhos, os olhos mais famintos e exaltados que alguma vez vira.” E prossegue com o reconstruir de uma história, também ela atravessada pela História e pelos seus personagens míticos, como Simón Bolívar. A história desta família vai mostrando as tragédias e os sonhos que em muito se assemelham à história do país, o Peru, ao mesmo tempo que as resgata do passado também as redimensiona. Ao registar e baptizar os filhos, Nicolasa inventa-lhes um pai sempre algures em “remotos países indistinguíveis” e em “viagem de comércio de metais”: “uma ficção, um artifício, uma mentira urgente que perdurou; um ser imaginado à força por uma mulher em que a felicidade de ser mãe competia com a inevitável amargura de viver essa maternidade proscrita, na sombra”.

A escrita de Renato Cisneros, com o seu colorido e riqueza vocabular, evoca, logo nas primeiras linhas, alguma da mais conhecida latino-americana (refira-se que os seus romances foram elogiados por Mario Vargas Llosa): “a paisagem cor de terra como pano de fundo”, e em que o “Sol aquecia os túmulos e cegava os cães vadios que deambulavam à procura de uma sombra.” Curiosamente, a escrita de Cisneros não retoma o imaginário do conhecido “realismo mágico”, mas não se afasta de um certo ambiente telúrico pontilhado a cores fortes e cheiros quase vívidos. Escrevi “curiosamente” porque a recente (ou nem tanto) literatura da América Latina, insistiu na “morte do pai” — os “pais” Rulfo, Roa Bastos, ou García Márquez, entre outros — por quem fora influenciada mas de quem acabam por se distanciar muito, sem no entanto rejeitarem as influências (o caso mais conhecido talvez seja Roberto Bolaño), mas Renato Cisneros, neste livro, parece querer fazer uma aproximação, sem os imitar.

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