Não, o Nobel da Medicina não disse que o jejum é melhor do que comer de três em três horas

O mais importante é encontrar também um nutricionista que antes de perceber de dietas, perceba de pessoas.

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Jennifer Pallian/Unsplash

Se algum dia ouvir um nutricionista, um médico ou outro qualquer profissional de saúde recomendar o que quer que seja com base no argumento “porque um prémio Nobel disse que…” pode desconfiar e muito. Um profissional que se baseia na evidência científica não precisa de se socorrer da falácia da autoridade para convencer um paciente.

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Se algum dia ouvir um nutricionista, um médico ou outro qualquer profissional de saúde recomendar o que quer que seja com base no argumento “porque um prémio Nobel disse que…” pode desconfiar e muito. Um profissional que se baseia na evidência científica não precisa de se socorrer da falácia da autoridade para convencer um paciente.

Como o artigo de hoje é sobre o jejum, podemos começar por quebrar logo o primeiro mito: Não, o prémio Nobel da Medicina “não foi categórico ao afirmar que jejum é muito melhor do que comer de 3 em 3 horas”, como certamente já viu disseminado no seu feed de noticias do Facebook. O que levou à atribuição do Nobel da Medicina a Yoshinori Ohsumi em 2016 foi o seu trabalho nos mecanismos de autofagia em células de levedura, que apesar de fornecer pistas interessantes para futura investigação, está ainda a uma distância considerável de considerar “categoricamente” que o jejum é a melhor opção para perder peso. O principal problema desta “notícia” em particular é a quantidade alarmante e preocupante de profissionais de saúde que a partilham e fazem com que muitos dos seus pacientes, que confiam no seu crivo científico, tomem estas notícias como verdadeiras e não como fake news que são, na realidade.

O jejum afinal faz bem ou é apenas mais uma dieta da moda?

A evidência que demonstra benefícios do jejum intermitente em animais é mais uma vez uma pista interessante, mas tal como já falado no último artigo relativamente ao açúcar e cocaína, os ratos não têm o contexto social em torno da alimentação que os humanos têm e por isso, para eles, comer é apenas um acto biológico e não social. Como tal interessa-nos mais o que dizem os estudos em humanos. Esta revisão recente que sumariza todos os estudos que demonstraram benefícios do jejum intermitente em humanos, tiveram as seguintes particularidades:

– nem sempre o jejum conduziu a perda de peso (em quatro dos 16 estudos não houve mudanças de peso e em um deles o peso aumentou);

– quase metade dos estudos (sete) não teve grupo controlo, e em dois deles o grupo controlo apenas manteve os seus hábitos alimentares. Isto faz com que nestes nove estudos não se saiba se os benefícios foram devido ao jejum, ou simplesmente à restrição calórica induzida nos participantes;

– os estudos que compararam o jejum com outro grupo que também estava em restrição calórica, não verificaram de forma geral diferenças significativas na glicemia, triglicerídeos, “bom” e “mau” colesterol, leptina, adiponectina e proteína C reativa (um marcador de inflamação). Em dois dos estudos os níveis de insulina em jejum diminuíram.

Tudo isto indica que a nível metabólico, os benefícios do jejum dependem inteiramente da restrição calórica que induzem e que (com muito boa vontade), pode ser uma estratégia útil para indivíduos mais resistentes à insulina. Além disso, como se tratam de estudos com duração reduzida (de apenas um dia a 12 semanas) é completamente abusivo tecer grandes considerações acerca do seu impacto na doença cardiovascular, cancro, diabetes e doença de Alzheimer, mas claro está que os gurus do jejum intermitente estão cheios de certezas sobre os benefícios desta estratégia nestas patologias. Para uma abordagem mais aprofundada do ponto de vista técnico, aqui fica um artigo que merece leitura.

Então se o jejum não é assim tão bom nem superior a uma dieta “convencional”, por que há tantos nutricionistas e médicos que o recomendam? A resposta é simples. Porque têm de continuar a alimentar a imagem que construíram. Da mesma forma que quem lê esta rubrica são provavelmente as pessoas que menos precisavam (pois já são cépticas por natureza e deixam que seja a ciência a pautar a sua conduta e não as suas crenças individuais), cada um dos gurus das modas alimentares também tem o seu público alvo, ao qual têm de reforçar constantemente a narrativa que construíram e que os tornou diferentes dos demais. Como tal, não podem deixar que a realidade (e a ciência) lhes estrague essa história e essa imagem muito disruptiva que conquistaram. Hoje em dia a área da nutrição é bastante apetecível porque há cada vez mais pessoas a terem cuidado com a alimentação e por isso o público alvo é, no limite, toda e qualquer pessoa. Ao contrário de algumas especialidades médicas a que cada um de nós só recorre quando tem esse problema de saúde específico, no caso da nutrição, toda a gente come e por isso, toda a gente é um possível cliente de um nutricionista ou de outros “profissionais” que se fazem passar por um. Por isso, não será de estranhar que a nível clínico a área da nutrição seja um mundo onde vale quase tudo para angariar clientes.

Voltando ao jejum, quando vemos trabalhos que demonstraram que pessoas que faziam mais refeições durante o dia aumentaram de peso (nem todos vão no mesmo sentido, sendo grande parte deles inconclusivos em relação ao número ideal de refeições), estes só mostram que quem comia mais vezes e fazia mais snacks comia mais calorias e por isso aumentava de peso. Uma “dieta” com 1500 kcal tem praticamente o mesmo efeito na massa gorda caso faça um almoço e um jantar de 750 kcal cada um, ou seis refeições de 250 kcal. 

O que podemos e devemos retirar de todas estas evidências relativamente ao jejum é que, de facto, não existem regras imutáveis em tábua de pedra no que diz respeito ao emagrecimento. Longos períodos de jejum podem ser uma boa alternativa para as “infelizes” pessoas que acordam sem fome e detestam o pequeno-almoço, ou não têm organização e planeamento suficiente para prepararem merendas equilibradas a meio da tarde ou a meio da manhã. Podem perfeitamente perder peso apenas fazendo almoço e jantar e sem comer de três em três horas, apesar de não ser de todo o melhor método para preservar ou aumentar a sua massa muscular. Para as outras pessoas, gostar de comer é bom, não é mau! Se prefere fazer refeições de três em três ou duas em duas horas que o faça, desde que no final do dia as calorias que come sejam inferiores às que precisa, caso o objectivo seja o emagrecimento. A partir daqui, que cada um faça a sua escolha de acordo com aquilo que se sente melhor, mas que mantenha a presença de espírito suficiente para não dizer aos sete mundos que a sua dieta é melhor do que a do vizinho e para partilhar no Facebook notícias falsas de sites duvidosos a dizer que o jejum cura o cancro e toda e qualquer doença.  

Comer é um acto social e às vezes por mais que um estudo indique que determinadas orientações façam mais sentido, como comer ou não de três em três horas, comer mais hidratos de carbono de manhã, à tarde ou à noite, a sustentabilidade que se exige a uma alimentação saudável, precisa que exista um conforto nessa mesma alimentação. Por isso, se sente bem com o jejum e o consegue manter para o resto da sua vida ótimo, caso não consiga o que não faltam são alternativas para o mesmo. Daí que o mais importante é encontrar também um nutricionista que antes de perceber de dietas, perceba de pessoas.