As canções instrumentais belas e ressacadas de Oba Loba

Chega finalmente aos palcos portugueses Sir Robert Williams, o segundo álbum do colectivo Oba Loba, criado por João e Norberto Lobo. Agora em sexta, aterra sábado na ZDB.

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Antes de ser nome de disco do colectivo Oba Loba, Sir Robert Williams, baronete, foi um engenheiro de minas escocês, um dos primeiros exploradores de África, envolvido no início do século XX na construção de uma linha ferroviária em Angola, a ligar o porto de Lobito à fronteira com a República Democrática do Congo – numa extensão de mais de mil quilómetros. Sendo público que a construção da linha a seu cargo teve por contrapartida a concessão da mesma por 99 anos, a escolha do nome do escocês para o álbum lançado pelo projecto que João Lobo e Norberto Lobo criaram em 2015 tem pouco que ver com a figura de Williams propriamente dita e com a sua biografia.

Na verdade, o baronete só tem justificação porque num dos temas do álbum, homónimo, em que João Lobo resolveu infiltrar entre os instrumentos uma gravação da sua avó a contar uma história que lhe era habitual, e que aludia a um encontro de um antepassado seu com o escocês que rumou a África para fazer fortuna. Assim, por entre a guitarra deslaçada, o piano de melodias avulsas, as minudentes melancolias oferecidas por sopros e cordas e os apontamentos abstractos da bateria, de súbito, no meio de todos estes elementos dispersos, o nome Sir Robert Williams sobe à tona, fura o som dos instrumentos e parece tornar-se central numa música que nada lhe deve.

É um dos temas mais desprendidos do segundo álbum – apresentado dia 17 na Zé dos Bois, em Lisboa – de um projecto que começou por ser pensado e assumido como duo de Norberto e João, mas que se tornou um organismo mais democrático e com um tronco mais robusto, capaz de acolher várias cabeças por igual. “No primeiro disco, eu e o Norberto escrevemos a música toda, fizemos os arranjos e chamámos os músicos para gravar”, lembra o baterista “Pensámos que ia mesmo ser um grupo nosso e em que dizíamos a cada um o que tinha de tocar, mas isso transformou-se – se bem que continuamos a ser os impulsionadores e quem tem a decisão final.”

O Oba Loba inicial – na altura designava sobretudo o álbum – dava continuidade a uma parceria a dois que tinha já sido registada em Mogul de Jade e resultava ainda dos frequentes encontros “para residências ou para falar da música que queríamos fazer”. “Nesses encontros fomos percebendo que havia todo um lado do nosso reportório – de princípio sobretudo do Norberto, mas depois fui ganhando coragem para também trazer as minhas ideias – em que queríamos trabalhar mais a composição e faltavam-nos instrumentos para podermos concretizar essas ideias. O Norberto tinha várias vozes na cabeça e não era possível tocarmos aquilo em duo.”

Não será exagero dizer-se que a primeira pista clara dessa vontade de expansão estava colocada num dos últimos capítulos de Mogul de Jade. Se em Oba Loba parecia abrir-se um luminoso mundo de canções instrumentais, deliciosamente convertidas à melodia e sempre em busca de uma beleza que tanto podia evocar a edificação cuidada da Penguin Cafe Orchestra quanto as tangentes pop desenhadas com frequência por Jim O’Rourke, o primeiro indício desse caminho parece revelar-se em Bragança. Magnífica canção pastoril, com guitarra, baixo e bateria, engrandecida pelas vozes de Mariana Ricardo e Crista Alfaiate, em Bragança espreitávamos pela fechadura para descobrir o que podia ser o pensamento composicional dos dois músicos e o quanto as suas criações tinham a ganhar com o acrescento de outras camadas melódicas.

Hoje há improvisação

“Quando gravámos o primeiro disco, nenhum dos músicos sabia muito bem o que aquilo era”, diz João Lobo, recuperando a primeira gravação de Oba Loba. Nesse momento inicial, o desenho daquela sonoridade muito particular não existia senão na arquitectura mental do duo. Mesmo tendo os músicos adicionais (Giovanni Di Domenico no piano e no órgão, Jordi Grognard em clarinete e na flauta, Ananta Roosens no violino e na trompete, e Lynn Cassiers na voz) sido escolhidos a dedo entre os parceiros habituais de aventuras do baterista sediado em Bruxelas, aquele era um ambiente musical singular, a precisar de ser desbravado e fixado para melhor se perceber a sua natureza. Entre músicos habituados a tocar sem rede, seguindo atrás das notas que uns e outros expelem no momento, e rotinados na invenção de caminhos à medida que a música avança para parte incerta, o primeiro álbum foi a definição necessária dos fundamentos daquela música, dando-lhe uma origem e uma geografia próprias.

Sir Robert Williams, lançado em 2017, goza desse mapeamento prévio e da microafinação de uma sonoridade que foi amadurecida em cima dos palcos – os muitos que se seguiram à boa recepção do primeiro disco. Di Domenico e Grognard tiveram carta-branca para apresentar as suas próprias composições, todos assumiram um papel mais activo na definição da identidade do colectivo e a improvisação passou a gozar de um espaço que antes lhe estava parcialmente vedado. Tanto assim que se em Oba Loba mesmo os ambientes mais abertos tinham sido compostos e imaginados com todo esse espaço que permitia às notas brilharem de forma pouco acidentada, em Sir Richard Williams encontramos mesmo um tema (Chuva no zinco) que nunca passou pelo papel e é 100% improvisado.

Talvez porque os códigos do grupo já estavam estabelecidos, a improvisação não resulta, no entanto, num corpo estranho à música de Oba Loba. Da mesma forma que não se franze o cenho a Honiara – ainda que possa ser “a música mais alien do disco” –, canção desavergonhadamente pop vinda da banda sonora de John From, filme de João Nicolau para o qual João Lobo foi chamado a participar na qualidade de autor da banda sonora. Honiara, com uma leve insinuação do jazz de sotaque brasileiro que conhecemos a Hermeto Pascoal, saiu da pena do próprio cineasta (ex-membro dos München). “Ele enviou-me um pequeno excerto a tocar ukulele e a cantar esta melodia”, diz o baterista. “E perguntava-me se eu achava que podíamos fazer alguma coisa com aquilo para o filme. Alonguei a composição, fiz o arranjo e depois tornou-se a música do genérico. Só que achei que fazia sentido tocá-la também com Oba Loba, mostrei ao resto da malta, eles gostaram e gravámos.”

Honiara é, por isso, o tema mais terreno de Sir Robert Williams. E isto porque a menor percentagem de música escrita torna este disco mais dilatado, mais árido, mais ressacado, procurando a beleza mais por acidente do que de forma planeada – esbarra-se nela em vez de se ser encaminhado na sua direcção.

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