A vida, normalmente, em queda

Depois de um silêncio de 11 anos, Jonathan Safran Foer, o menino-génio das letras norte-americanas, regressa com o seu livro mais autobiográfico. Aqui Estou: as escolhas que se fazem quando o mundo pessoal e o mundo exterior entram em colapso.

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Aqui Estou é o terceiro romance de Foer e o primeiro em 11 anos, depois dos sucessos de Estava Tudo Iluminado (2002) e de Extremamente Alto e Incrivelmente Perto (2005). O que fez entretanto? “Vivi” David Levenson/Getty Images

Sam, filho mais velho de Julia e de Jacob Bloch, é um rapaz quase a fazer 13 anos em véspera do seu bar mitzvá, a cerimónia religiosa, rito e passagem, a partir a qual os rapazes judeus de 13 anos são considerados moralmente responsáveis. Está contrariado. Por ele, não leria os textos bíblicos na Sinagoga e, para provar como isso o desgosta, chega a dizer aos irmãos que era capaz de sair de casa só para o evitar. Os outros dois concordam com a fuga, mas é ele a dizer que vão ficar. “Porquê?”, pergunta-lhe Benjy, de cinco anos. Pela cabeça de Sam passam muitas respostas, como: “Porque é preciso tomar conta de ti e eu sozinho não consigo. Ou: porque a vida não é como um filme de Wes Anderson.” Mas diz, antes: “Porque assim a nossa casa ficaria completamente vazia.”

Três crianças a fugir seria demasiada fantasia até para a cabeça de uma criança que gostaria de fugir para não cumprir uma obrigação. Nos filmes de Wes Anderson talvez os três irmãos se dessem bem na fuga. Num romance de Jonathan Safran Foer, ancorado no quotidiano e no desmoronar de um casal, passar dessa proposta infantil seria desonesto. Confrontado com a pergunta sobre se a vida tem mais a ver com um romance de Jonathan Safran Foer do que com um filme de Wes Anderson, o escritor de 41 anos ri. “Posso dizer que a minha vida é mais como um romance de Jonathan Safran Foer no sentido de perspectiva. Não sei se estava a tentar fazer qualquer statement sobre a vida quando escrevi isso; achei que tinha piada naquele contexto do livro.”

Aqui Estou é o terceiro romance de Foer e o primeiro em 11 anos, depois dos sucessos de Estava Tudo Iluminado (2002) e de Extremamente Alto e Incrivelmente Perto (2005). Ou seja, aos 29 anos, quando era a mais brilhante entre as novas estrelas da literatura americana, fez uma longa pausa. Nesse período publicou um ensaio em 2009, Eating Animals. E em 2016 surgiu Aqui Estou, frase do Génesis, o primeiro livro da Bíblia, dita por Abraão a Deus quando este o põe perante a mais dura das provas: sacrificar o filho e revelar o amor incondicional ao divino. É a mais extrema das escolhas. O homem entre os sentimentos soberanos: amor ao filho, amor ao divino. É Foer a falar da escolha, constante, permanente, como acto vital — nem que a escolha seja não fazer nada de novo num quotidiano arrastado até um dia.

Partindo de um núcleo, uma família judia na América, o escritor faz perguntas fundamentais: o que significa ter uma boa vida? O que é ser religioso? Como conciliar o ateísmo e o respeito pelos rituais religiosos? Será a felicidade a derradeira ambição? O que é a honestidade intelectual? A identidade; ser judeu e ser americano. O que é a América? Por que é que o mundo odeia judeus? Porquê a obsessão judaica com a palavra? Como defender o vegetarianismo e gostar de junk food? O que são o amor, o casamento, o divórcio? Como manter uma família quando tudo se precipita para o abismo? Até o mundo. Israel e um terramoto. A guerra. E sempre o problema da linguagem: “Como representar o riso verdadeiro?”; “Como representar o choro?” E o medo? E a tristeza? E como se chora e se ri em judaico? E como é que um livro pode falar de tudo isto sem falhar nem se tornar um fardo pesado?

Eis o terceiro romance de Jonathan Foer depois de uma longa pausa. Em que fez o quê? “Vivi”, responde sem a menor intenção de acrescentar o que quer que seja. É o silêncio do interlocutor do outro lado do telefone que o faz continuar: “Sim, estive muito ocupado a viver. Tive dois filhos.” Podia dizer que também se divorciou e tudo isso ajudou a escrever o seu romance mais autobiográfico. Mas, concluindo, foram 11 anos em que não esteve sempre a escrever nem a pensar em literatura. “Gosto de escrever, quase sempre, mas nem sempre. É a minha profissão e faz parte da minha identidade, mas não é a parte maior. É muito frequente ouvir um escritor dizer que morreria se não pudesse escrever. Eu não me sinto nada assim. Por isso acho que tenho sorte por poder ter esta relação com a escrita. Ela permite-me manter-me honesto em relação ao que escrevo. Escrevo apenas quando me sinto impelido a isso.”

O ruído do mundo

Jacob, marido de Julia, pai de Sam, Max e Benjy — o menino para quem o barulho do motor do frigorífico era o ruído do tempo —, filho de Irv, neto de Isaac Bloch que sobreviveu ao Holocausto e que depois disso vai estabelecendo metas para sobreviver na vida — a próxima é o bar mitzvá do bisneto —, também pensa na autenticidade da escrita. Ele é um argumentista da HBO, que cresceu e vive na mesma cidade e no mesmo bairro privilegiado de Safran Foer, Cleveland Park, Washington DC. Foer mudou-se para Brooklyn, em Nova Iorque, e isso deu-lhe distância para escrever sobre as origens. Nesta conversa, vem em auxílio da sua personagem: “Autenticidade ou honestidade literária é escrever pelas razões certas. Escrever não para chegar ao final de um projecto, mas porque há alguma coisa parecida com uma necessidade ou significância. O mundo não precisa de mais livros per se e a minha vida não fica melhor ou mais rica por ter escrito livros per se. O mundo precisa de bons livros e a minha vida fica melhor quando escrevo coisas que me pareçam significantes, importantes, como quanto articulo qualquer coisa que importa para mim num modo que também me importa a mim. Sinto sempre que sei quando estou a trabalhar nalguma coisa que me pareça utilitária — quando tem alguma função.”

Função? Isso não é o contrário da arte? “É verdade. Os professores de Arte na Universidade dizem sempre que a arte é uma coisa que não tem utilidade ou propósito, e que quando tem pode continuar a ser fantástica, mas não é uma obra de arte porque faz cedências... O facto é que quando escrevo sinto-me sempre mais vulnerável, ou sensível, quando  estou a fazer uma coisa pelas boas razões ou pelas melhores razões do que quando estou a fazer coisas por razões menos boas. Talvez por isso o sentido de bem seja uma função.”

Em Estou Aqui (edição Alfaguara numa boa tradução de Joana Neves), Jonathan Safran Foer parece estar em simultâneo a gerir presente e passado com um pensamento a ecoar: eu sou eu no mundo. E isso tem tanto de libertador como de condicionante nas escolhas que faz. Que todos fazemos. Em função de uma circunstância, de uma história, de uma identidade. Somos nós e um quotidiano. Ou mais prosaicamente: “Sou judeu!”, afirma uma personagem. Faltaria acrescentar: “... no mundo”.

Agora, longe de Washington DC, o judeu não religioso que é Foer olha para a vida normal de uma série de gente normal dentro de parâmetros sui generis de normalidade. É o livro onde vai mais profundamente até à sua condição judia e à identidade americana. Esta é a vida de Jacob e Julia — protagonistas de Aqui Estou — depois de se terem apaixonado, mas sobretudo quando ainda lhes era possível a memória do amor que sentiram um pelo outro: “Jacob e Julia nunca foram o tipo de pessoas que desafiam as convenções por princípio, mas também nunca teriam imaginado que se tornariam tão convencionais: compraram um segundo carro (e seguro para o segundo carro); inscreveram-se num ginásio com um catálogo de aulas de 20 páginas; faziam a declaração de impostos através de um contabilista; por vezes, mandavam uma garrafa de vinho para trás; compraram uma casa com lavatórios duplos (e seguro do lar); passaram a comprar o dobro dos produtos de higiene; mandaram construir um recinto de teca para os contentores do lixo; substituíram o fogão por um novo, de melhor aspecto; tiveram um filho (e fizeram seguro de vida); encomendavam vitaminas da Califórnia e colchões da Suécia; compravam roupa de criança orgânica cujo preço, amortizado pelo número de vezes que era usada, praticamente os obrigou a ter outro filho. Tiveram outro filho, fizeram a ronda de seis escolas, consideraram se um tapete seria um bom investimento, sabiam quais eram as melhores coisas (aspiradores Míele, robôs de cozinha Vitamix, facas Misono, tintas Farrow and Ball), comiam quantidades freudianas de sushi e trabalhavam mais ainda para poderem pagar a outra pessoa para cuidar dos filhos enquanto eles trabalhavam. Tiveram outro filho.”       

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Jacob e Julia estiveram presentes desde o primeiro momento neste livro, ou melhor, na ideia deste livro. Safran Foer não sabe dizer qual foi o primeiro impulso para a escrita de um romance sobre o qual sabe também dizer pouco: “Está tudo lá”, limita-se a enunciar. “Coisas muito diferentes motivaram-me. Por vezes estava interessado em relações parentais, noutras em relações românticas, noutras ainda em escrever sobre a América, ou sobre o judaísmo e cultura judaica. Um dos benefícios de estar a escrever um livro ao longo de muito tempo, e também uma das coisas que tornam difícil essa escrita, é que mudamos muito ao longo do tempo. Isto implica que a minha relação com o livro ou com as diferentes partes que o compõem mudem também.”

Há uma perspectiva que se encontra acima da tudo na formulação de perguntas. Por que evitamos perguntar o que é a felicidade, por exemplo? “Transformamos essa busca em sofrimento de tal modo que nos afastamos dela e enquanto a procuramos deixamo-la escapar. Como se quiséssemos que a nossa vida correspondesse a uma definição de felicidade.” Ideal impossível? “Se em jovens pensarmos nela como entretenimento permanente é bem provável. Mas, à medida que vamos envelhecendo, essa ideia vai-se redefinindo de modo a que a possamos atingir.” E talvez sim. Um condicional que elabora com boa dose de humor, algum cinismo e capacidade de montar um espelho incómodo à frente de cada leitor.

Por exemplo: “Todas as manhãs felizes são parecidas umas com as outras, tal como todas as manhãs são infelizes, e esse é o cerne do que as faz ser tão profundamente infelizes: a sensação de que essa infelicidade já aconteceu antes, de que qualquer esforço para evitar irá apenas, na melhor das hipóteses, reforçá-la, talvez até exacerbá-la, que o universo está, por alguma razão inconcebível, desnecessária e injusta, a conspirar contra a inocente sequência de roupa, pequeno-almoço, dentes, insignes remoinhos de cabelo, sapatos, casacos, adeus.” São as manhãs de Jacob e de Julia, casados vai fazer 16 anos, juntos por um sentimento de família e de felicidade que já perseguiram mas deixaram de saber onde encontrar ou onde ficou. Queremos voltar à felicidade”, diz Julia ao rabi, e ele fala-lhe de um provérbio hassídico. “Quando corremos atrás da felicidade, fugimos da satisfação.”

Lemos isto e todos os sinais apontam para um fim. Há uma farsa montada não apenas como a sente Sam em relação ao seu bar mitzvá. Não é sequer uma farsa consciente e essa é a grande tragédia. Pode-se viver permanentemente assim, a não ser que Julia encontre um segundo telemóvel de Jacob com mensagens sexuais dirigidas a outra mulher. Isso desencadeia o fim, um fim. Julia, a arquitecta que nunca projectou uma casa e vive a fazer planos de uma casa em miniatura só para ela, solitária, o contrário do que construiu, terá de fazer uma escolha. Julia escolhe perseguir a felicidade. Mas, outra vez, ela é alguém no mundo. Sabemos dela pelo narrador, a perspectiva dela em contraste com a dos outros membros da família. Foer deixou a primeira pessoa dos romances anteriores e assume uma voz menos condicionada. A expressão é dele. “Permite-me um alcance muito maior, não estou limitado por um tipo particular de inteligência ou de experiência — a de um narrador na primeira pessoa. Acho que assim estou mais próximo do que sou e, pela primeira vez, ouço a minha própria voz, o que quer que isso signifique. Resumindo: senti que estava a escrever na minha própria voz mais do que nos livros anteriores.”

E a ser também mais autobiográfico. Quando fala do judaísmo ou do divórcio ou da parentalidade. Quando no início da conversa disse que nestes anos viveu, estava subjacente que também se divorciou de Nicole Krauss (autora de A História do Amor e A Casa Grande, D. Quixote, 2006 e 2011), com quem esteve casado dez anos e de quem teve dois filhos. “Não é que seja um livro autobiográfico, mas é o mais autobiográfico, e penso que escrevo sobre experiências que tive, sobretudo relacionadas com a paternidade. Mas é em tudo mais directamente autobiográfico do que nos livros anteriores.”

É como se deixasse entrar nele o que foi a sua vida, as perguntas que o assolam, a política versus uma intimidade tão privada que mais uma vez parece andar a tactear a linguagem para chegar ao que quer dizer. Como se diz fim no amor? Como se percebe que é a última vez? “Um bebé nunca sabe quando é que um mamilo lhe é tirado da boca pela última vez. Uma criança nunca sabe quando é que chama ‘mamã’ à mãe pela última vez. Nenhum rapazinho sabe quando é fechado o livro do qual lhe foi lida a última história para adormecer. Nenhum rapaz sabe quando se vai esvaziar a água do último banho que tomará com o irmão. Nenhum jovem sabe, ao sentir pela primeira vez o maior prazer, que nunca mais voltará a não ser sexual. Nenhuma rapariga à beira de ser mulher sabe, ao dormir, que vai demorar quatro décadas a voltar a acordar infértil. Nenhuma mãe sabe que está a ouvir a palavra mamã pela última vez. Nenhum pai sabe quando fechou o livro da última história para adormecer que alguma vez lerá: ‘Desde esse dia, e por muitos anos mais, reinou a paz na ilha de Ítaca, e os deuses favoreceram Ulisses, e a sua mulher, e o seu filho’.”       

Há um ritmo célere. São 700 páginas que correm como um diálogo. Por vezes pausado, outras na urgência da discussão, do jogo de palavras. Como perceber que se andou uma vida a cantarolar erradamente a frase de uma canção? I can see from shame, ia entoando Jacob ao som de Nirvana e All Apologies. “O quê?”, perguntou-lhe Julia ao ouvi-lo. Nada disso, o que Kurt Cobain escreveu e cantava era aqua seafom shame. Não podia ser. O que quereria isso dizer? Não tem de querer dizer nada, uma escritor também pode não querer dizer muita coisa, ou nem todas as coisas que os leitores, que cada leitor, quer ler ou entender. Jonathan Safran Foer parece querer sublinhar isso em toda a conversa. O que ele quis com o romance é o próprio romance. A salientar há o processo.

“Para mim, o melhor de escrever são as associações, ver o que é mais associável. Tive muitas ideias, achei poucas boas e quase nenhuma confirmou ser boa. Não são planos que se façam. Há umas que entusiasmam ou não; quando me entusiasmam, acontece de maneira surpreendente, como acidentes, coisas que se encontram sem que se esteja à procura delas. Muito deste livro resulta desse processo. Essa canção é um bom exemplo. Claro que não me sentei e disse: ‘Vou tentar pensar na letra de uma canção de Kurt Cobain que seja inspiradora e usá-la como metáfora para qualquer coisa’. Apareceu no contexto da minha escrita e faz sentido no mundo daquelas personagens. Ocorreu-me. É o tipo de coisas que podem ocorrer quando estamos abertos, e isso é que é difícil de fazer. É um trabalho muito duro aprender a como estar aberto a esse tipo de intuições e reconhecê-las quando aparecem, avaliá-las mesmo quando parecem tontas ou uma perda de tempo. Neste livro há tantas coisas, mas tantas que vieram por associação. Vindas de podcasts, informação, anedotas; coisas que me ocorrem quando simplesmente me torno disponível.”

E mais uma vez o ritmo é exemplo disso, compondo um puzzle complexo, mas de aparências simples, sem tiques de escrita snob nem busca de grandes explicações quando a pergunta quer ser pessoal, quer indagar, por exemplo, um tema clássico dos escritores americanos judeus como Foer, o da identidade, tão explorado por Philip Roth ou Saul Bellow sem que para isso tenham hipotecado qualquer universalidade. A indagação de um homem ou de uma mulher, qualquer que seja a sua religião ou origem, é sempre a indagação de um homem ou de uma mulher. Humanas. “Ser judeu americano significa coisas diferentes para diferentes pessoas. O livro é a melhor resposta para essa questão. Não estava exactamente interessado em escrever um livro que explicasse o que significa ser judeu, mas penso que de certa forma foi o que fiz.” E ser judeu e ateu. “É uma coisa com muitos aspectos diferentes. É a cultura em que fui criado e o tipo de história em que aprendi a escutar; os rituais que cresci a praticar, o tipo de história partilhada, uma história de partilha traumática. Há tipos de humor e de tragédia tradicionais embora não exclusivos dos judeus, e modos de pensar a vida em família, a transmissão de certo tipo de valores. Tenho uma postura muito diferente em relação ao judaísmo enquanto pai do que tinha antes de ser pai. Sou muito diferente aos 40 do que quando era criança. Por exemplo, como penso o bar mitzvá do meu filho, no próximo ano. Isso levanta-me questões que, de outra forma, não poria.”

Ser ateu e ser religioso neste presente histórico é ter, por exemplo, dois livros como formadores: A Bíblia e a Odisseia. Há muitas referências literárias, musicais, do universo pop ao mais erudito; mas a Bíblia e a Odisseia são as âncoras de Aqui Estou. “São muito importantes. Livros similares e diferentes. Li-os muito cedo. E agora, em relação à Odisseia, a minha memória central é a de a ler aos meus filhos. Li-a duas vezes a cada um. Foi uma experiência muito importante para eles e para mim.” Faz uma pausa depois de contar isto. Pergunta se não estarei interessada numa resposta mais elaborada. “Se quiser, elaboro, posso dar a resposta que se espera de um escritor, mas o mais sincero é isto.”

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