O júbilo barroco da linguagem

Um livro de contos que são como lições de um tratado de retórica: eles são obra de um espantoso engenho que exaspera e leva ao estado de Babel a linguagem literária.

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Estes contos de Luís Miguel Rosa fazem da linguagem uma festa DR

O conto é a forma narrativa que exige uma forte incidência no enredo e, por isso, torna-se apto a ser parafraseado. Não assim com qualquer um dos oito contos que compõem Nova Arte de Conceitos, livro de estreia de Luís Miguel Rosa: no fim da leitura de cada conto, o leitor dificilmente consegue reconstituir uma história e até as informações elementares sobre as categorias da narrativa lhe escapam. Ou porque a atenção foi desviada para outro lado ou porque se omitem ou se desvanecem os dados que assegurariam a paráfrase. E o que aparece e triunfa quando tudo isso desaparece? A linguagem. Estes contos fazem da linguagem uma festa. Diríamos mesmo: uma orgia. O que eles fazem com um deleite escandaloso é babelizar, levar a língua ao estado de Babel. É certo que conseguimos apreender em cada conto o quadro geral da acção e das respectivas personagens. E até temos uma enorme diversidade: desde o conto que se passa na Idade Média, em que a personagem principal é um poeta muçulmano (o que dá lugar a uma multiplicação de referências eruditas à literatura e à cultura árabes da época), até um diálogo delirante, entre um jovem que está à espera do metro e um linguista, em que o jargon suburbano dos adolescentes se torna quase uma peça musical. Mas, no final, muito pouco resta da ordem da representação: os contos exploram uma eloquência retórica que exacerba e exaspera o puro artifício da linguagem e tudo se resolve numa mimética do nada. Leia-se, por exemplo, esta passagem do primeiro conto, onde há um o jogo de repetição (assonância) dos sons vocálico a e u: “A cultura sussurra luz, chamusca brumas, causa rugas a dunas, mas nunca cura a gula das turbamultas, nunca assucata catapultas, nunca mura a pujança da bagunça humana, aguarda-a a urna augusta”. Assonâncias, aliterações, metáforas, analogias, hipérboles, listas, anacronismos, neologismos: tudo isto e muito mais, numa cenografia barroca que não tem nada de subtil. Pelo contrário: realiza-se no excesso, na ostentação, no artifício. Sem complacências nem pudor: o leitor aguenta ou não aguenta.

No seu exagero extravagante e no seu delírio formalista, estes contos fazem-nos ver, por contraste, o contexto de onde eles emergem. Esse contexto, que é o da ficção portuguesa actual, é dominado por uma literatura narrativa muito bem comportada, por um puritanismo do conteúdo. Neste contos, pelo contrário, o leitor é completamente dissuadido de procurar saber “sobre” o que escreve o escritor, é convidado a não procurar um mundo por trás da linguagem, já que tudo surge ensombrado pelo artifício totalitário do estilo e pelos efeitos da linguagem. Um pequeno excerto, tirado ao acaso “Como não estar louco quando passo o prazo num sepulcro, só os olhos, qual vermes, vivos quando vago vivo por uma cerração, cumprindo pena numa prisa sem pleito feito, vida que por fala daria este meu falo?” (pág. 131).

Cada um dos contos tem uma epígrafe retirada de Corte na Aldeia, de Francisco Rodrigues Lobo. Estamos aqui em pleno século XVII, excepto no título do livro, que retoma o título de um tratado de retórica do século XVIII, de Francisco Leitão Ferreira. Numa pequena entrevista que está publicada online, Luís Miguel Rosa explica assim a função dessas epígrafes: “Há um capítulo maravilhoso em Corte na Aldeia onde as personagens discutem retórica, ou melhor, condenam a retórica barroca (...). Então decidi usar citações como epígrafes de cada conto, num jogo de ponto e contraponto. Se ele condena o uso de arcaísmos, então dou-lhe um conto cheio de palavras desusadas. E quando ele se queixa dos ‘mancebos’ que fazem ‘na prosa acentos de música ou medidas de poema’, tive por bem dar-lhe um conto todo escrito em prosa rimada”. É evidente que a retórica barroca (obviamente despojada de toda a transcendência do universo barroco que animava a encenação teatral do infinito e a dramatização do amor e da morte) é uma questão fundamental nestes contos. Aquilo que neles é exuberância e artifício, relação lúdica com a linguagem e euforia retórica, foi apreendido na lição do barroco literário, que fez da linguagem uma “agudeza do espírito”, segundo a lição de Baltazar Gracián, e um corpo sensual. Esta sensualidade na relação com a linguagem, própria de todo o barroco, desencadeia um outro puritanismo, ainda mais irado do que o puritanismo do conteúdo. Jorge Luís Borges, no início da sua História Universal da Infâmia, define-o assim: “Eu diria que o barroco é aquele estilo que deliberadamente esgota (ou quer esgotar) as suas possibilidades e que roça a sua própria caricatura”. Nessa caricatura, alguns traços fundamentais são os da proliferação e ostentação do estilo. “o estilo está em todo o lado”, escreveu Balatzar Gracián, o génio do barroco espanhol. Aberta a essa proliferação, a escrita barroca destes contos (cada um deles concebido como uma “lição” de um tratado) não hesitam em exceder as distâncias e forçar a ordem real do mundo das coisas em benefício de um júbilo retórico. Nos momentos mais extremos ,é como se deixasse de estar em causa qualquer preocupação com a produção de sentido e a zona de cristalização do trabalho literário tivesse passado a ser apenas a linguagem, fascinada pela sua auto-referencialidade e voltada exclusivamente para a sua imagem especular.

Como é fácil perceber, estas contos são muitas vezes exasperantes e requerem do leitor uma disposição intelectual que não se compadece com os mitos românticos e realistas da literatura. Mas trata-se de um exercício que não pode ser prosseguido. Ou melhor: que se tornaria completamente inócuo repetir ou prolongar. Por isso, a um escritor que se estreia desta maneira é necessário dirigir uma pergunta que fica a pairar: e depois de Nova Arte de Conceitos, o que se segue?

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