Direito à “boa arquitectura”

A proposta de lei que permite a engenheiros assinarem projectos de arquitectura deverá ser ser votada a 16 de Março em plenário, na Assembleia da República. Tema divide profissionais das duas áreas. A arquitecta Sofia Machado Santos está contra e explica porquê

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Os espaços que construímos são o reflexo da grandiosidade de um povo. É notável como essa grandiosidade se esfuma perante um território pejado de "arquitecturas" pobres que carimbam a paisagem de forma indiferenciada. Prevalecem caixotes de solução estrutural simples sobre o estudo para a qualidade do espaço. Alguém viverá uma vida inteira nesse caixote mal implantado, mal orientado e mal ventilado. Não é preciso sair de Lisboa ou Porto para distinguir uma prática da outra, mas saindo a realidade destas duas práticas é ainda mais impactante.

 

Dentro da mesma linha podemos falar de valores, aqueles que definem carácter. Aqueles que, em conjunto, podem apelidar uma sociedade de honesta ou desonesta. Se eu disser que queremos ser um povo honesto, fiável, honrado, cumpridor, todos estaremos de acordo. É só preciso passar à prática e honrar os compromissos assumidos.

 

Temos todos vivido tempos difíceis e é nessas alturas que se demonstra carácter. Para se acreditar na figura do Estado temos de ter a confiança de que, quem nos representa, percebe o que está a fazer. Curiosamente, e apesar do reconhecimento mundial, em Portugal, a "boa arquitectura" tem sido bastante preterida.

 

Constituiu-se a Ordem Profissional em 1998 e em 2003 a petição pública “Direito da Arquitectura” marca o início de um larguíssimo processo a partir de 54.839 assinaturas. Queríamos ir no sentido de regular a profissão e garantir a qualidade do construído. Parece-vos assim tão mal?

 

Entre cedências mútuas e acordos estabeleceram-se 12 anos de transição com o objectivo de assegurar que todos os que exerciam uma dita "arquitectura simples" pudessem colmatar lacunas e passar a arquitectos plenos, como todos os outros. Como é possível que um Governo ignore um compromisso assumido no final de uma transição de 12 anos. São 12 anos à espera de que a arquitectura seja um exercício de arquitectos. O que estamos a transmitir à geração que agora estamos a formar? 

 

Se olharmos para o país no virar do milénio, a ideia de património construído, a ideia e prática de investimento em novos equipamentos ao serviço da população ganhou relevo enquanto instrumento social, político e económico. Parecia estar aberto o reconhecimento do papel do arquitecto no grupo de especialistas necessários à construção do espaço. Porque é que queremos voltar para trás?

 

Em 2001, ao sair da faculdade, éramos muitos, jovens e cheios de vontade, alimentados por uma escola exigente e pelo Pritzker de 1992. Foram muitos os que, como eu, viram, um pouco surpreendidos, a excelência do ensino da prática da arquitectura portuguesa reflectida nos elogios de grandes ateliers de arquitectura por esse mundo fora. O que é que entretanto se pedia por cá e se tem vindo a pedir? Apenas e só que os projectos de arquitectura fossem elaborados por arquitectos inscritos em Ordem Profissional própria. Esta questão seria um absurdo se não fosse uma situação real. 

 

A quatro meses do fim do período de transição: “Tudo está bem quando há trabalho e agora há engenheiros sem trabalho, isto é uma questão de justiça.” Ouvimos a frase no discurso do bastonário da Ordem dos Engenheiros no esclarecimento aos membros a propósito da luta das assinaturas. Estará em causa o trabalho e não a competência, foi para tal que existiu um período de transição.

 

Porquê o retrocesso?

Agora que existem arquitectos em todo o território.

Agora que somos 24 mil arquitectos.

Agora que estão em funcionamento 17 cursos de arquitectura.

Agora que se licenciam 800 arquitectos por ano.

Agora que a arquitectura portuguesa é galardoada com dois prémios Pritzker.

Agora que existe uma Política Pública de Arquitectura que vincula o Estado à defesa da arquitectura.

 

Na actual disputa corporativa entre arquitectos e engenheiros, eis a altura certa para conferir interesse público pela defesa da "boa arquitectura". Em 2018 este é um projecto de lei que não dá futuro a Portugal.

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