Uma mensagem para Costa em Estrasburgo

No caso das multinacionais, que é dinheiro perdido pelos estados-membros, Portugal deveria declarar-se a favor do estabelecimento de uma base fiscal empresarial comum a toda a UE.

Aquilo que não é feito para a televisão nacional não existe em Portugal. Um congresso partidário, mesmo sem grande história, ocupa um fim-de-semana inteiro e dá pano para dias e dias de comentário. Os debates quinzenais na Assembleia da República, mesmo quando se excedem em ser uma coleção de dichotes e ataques insubstanciais, têm direito a transmissão em direto, em diferido, e a editorial no dia seguinte.

Não acho mal. O que acho mal é o outro lado da medalha: eventos com mais influência sobre a nossa vida concreta que passam despercebidos. Hoje veremos se é um desses casos: António Costa vai discursar a Estrasburgo sobre o futuro da União Europeia e deverá apresentar aquela que é, para todos os efeitos, a posição portuguesa sobre alguns dos temas que efetivamente ditarão que investimento público vamos ter disponível, que impostos vamos pagar e que dinheiro vamos ter no bolso daqui a uns anos. Ou seja: novo orçamento da UE, recursos próprios da União e completar a reforma do euro. Pelo menos isto.

Com a perspicácia daqueles que acham que a lua não tem importância nas noites em que não a vêem, não faltarão comentadores dispostos a concluir que nada disto tem relevância. Uns porque estão investidos em dizer que a UE é irreformável, outros porque insistem que a opinião portuguesa não tem qualquer importância, outros ainda por preconceito contra o Parlamento Europeu. Todos estão enganados. A UE tem muitos defeitos e poderíamos querer que se movesse noutra direção; mas olhe-se para os últimos vinte anos e facilmente veremos que — de novos tratados a uma nova moeda — quieta é que ela não tem estado. Não é pois avisado desviar o olhar do que se está a passar a nível europeu. A opinião de Portugal conta, tal como a opinião de países até mais pequenos do que Portugal (veja-se a Irlanda), mesmo que o país tenha de se concentrar em apenas algumas prioridades e objetivos. E não só o Parlamento Europeu tem mais poder do que se pensa (e mais liberdade de ação do que a maioria dos parlamentos nacionais enfeudados a uma maioria de governo) como o discurso de Costa será também seguido pela Comissão e pelo Conselho para se fazerem as contas às maiorias que permitiriam aprovar a quantidade considerável de propostas que estão na agenda europeia até ao início de 2020.

Mas que estou eu a fazer? A tentar convencer quem provavelmente nunca se convencerá a prestar atenção à política europeia? Ingenuidade minha. A argumentação eurofóbica consegue o feito de ser circular e contraditória ao mesmo tempo: a Europa é terrível e por isso dá-nos cabo da vida, mas ao mesmo tempo a Europa é irremediavelmente fútil e não se lhe deve prestar atenção alguma. Tudo menos ser obrigado a aprender qualquer coisa sobre o assunto e desafiar as ideias feitas.

Melhor ocupar o nosso tempo a refletir sobre aquilo em que António Costa deveria focar-se hoje em Estrasburgo. Num tipo de discurso que nunca é só sobre um tema, deve haver a preocupação de que toda a gente que o ouça saia dali com pelo menos uma ideia na cabeça. Em minha opinião, o chefe do governo português deveria escolher a seguinte denúncia: as multinacionais, que já pagavam poucos impostos antes da crise, pagam hoje ainda menos: uma taxa média de 9%, escandalosamente a baixo daquilo que pagam os trabalhadores. Na Europa, os pobres pagaram a crise enquanto a multinacionais ficaram mais ricas e passaram a contribuir menos. Portugal não deve achar que isso é normal nem aceitável.

Para mais, estas são as empresas que mais beneficiam com o mercado único. Sendo assim, é mais do que justo que contribuam para que a entidade que lhes proporciona esse mercado único — a União Europeia — possa fazer alguma redistribuição.

O governo português já anunciou que é favorável à criação de impostos europeus sobre a poluição, as transações financeiras e as plataformas digitais. Mas esse serão destinados a recursos próprios da União. No caso das multinacionais, que é dinheiro perdido pelos estados-membros, Portugal deveria declarar-se a favor do estabelecimento de uma base fiscal empresarial comum a toda a UE, e mesmo ir mais longe, propondo um mecanismo em que a Comissão Europeia recolhesse o imposto devido pelas multinacionais e o redistribuísse pelos estados-membros onde se deram as transações que geraram os lucros que escaparam à taxação.

Seria bom ver Portugal pôr-se decisivamente do lado de muitos outros avanços necessários para a UE, sobretudo do lado de uma profunda democratização das instituições europeias. Mas sabemos como isso é difícil com a atual configuração da convergência de esquerda na Assembleia da República. Ao menos a proposta de taxar as multinacionais por via da UE e devolver o dinheiro aos estados deveria poder contar com o apoio da maioria parlamentar portuguesa. Se os pobres pagaram injustamente a crise, as multinacionais que ajudem a pagar a recuperação.

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