Um teste à Grã-Bretanha

“A crise de Salisbury pode propiciar uma inesperada oportunidade para reestruturar as relações europeias com a Rússia, reforçando tanto os incentivos positivos como os negativos, uma radical viragem na análise de custos e benefícios para o Kremlin”.

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O vigor da reacção de Theresa May, quase um ultimato, surpreendeu os meios diplomáticos. Exigiu a Moscovo uma explicação sobre o envenenamento de Serguei Skripal e sua filha Yulia, até terça-feira à noite. Esta quarta-feira, cumpriu a ameaça: ordenou a expulsão de 23 diplomatas russos, suspendeu os contactos bilaterais e, sobretudo, internacionalizou o caso, convocando uma reunião imediata do Conselho de Segurança da ONU e propondo aos aliados europeus medidas de prevenção comuns contra a espionagem russa.

Para os analistas britânicos, o ataque a Skripal, um antigo agente duplo, seria um teste de verificação da “fraqueza do Reino Unido” e, ao mesmo tempo, um aviso a dissidentes e desertores — nenhum está seguro, mesmo no estrangeiro. É longa a lista dos assassínios em território britânico. Segundo Londres, o caso Skripal obedece ao padrão de acção do KGB e a pista do agente químico utilizado aponta para a Rússia.

Que se seguirá? Samuel A. Greene, do International Institute for Strategic Studies (IISS), de Londres, faz uma lista de respostas possíveis, como fechar o canal russo de televisão RT no Reino Unido, boicotar o Mundial de futebol ou expulsar o embaixador russo em Londres. São medidas simbólicas. Outra via seria aplicar sanções a oligarcas russos, amigos de Putin, que têm as suas fortunas na City de Londres. Mas também levanta problemas.

Para estes analistas, a melhor opção seria outra: “A crise de Salisbury pode propiciar uma inesperada oportunidade para reestruturar as relações europeias com a Rússia, reforçando tanto os incentivos positivos como os negativos, uma radical viragem na análise de custos e benefícios para o Kremlin”, e reabrindo, entre outros, os dossiers ucraniano e do arsenal de venenos.

Depois do “Brexit”

Nos anos recentes, desde o assassínio de Alexander Litvinenko, em 2006, os governos britânicos nunca mostraram muito zelo nas investigações. Em parte para não afectar os maciços investimentos russos na City.

Os analistas John Lough e James Sherr, do think-tank Chatham House, dizem que os russos vêem o enfraquecimento da força militar da Grã-Bretanha como uma “abdicação do [seu] estatuto de potência”. E tomaram nota da crescente ausência britânica no processo ucraniano. Finalmente, olham o “Brexit” como outro factor de enfraquecimento da “influência global” britânica.

“O caso Skripal não é apenas o reflexo de percepção de uma fraqueza. É também um teste. Se o Reino Unido escolher uma resposta dura, terá o apoio dos aliados” ou apenas boas palavras?

Resta a questão da City e dos capitais russos, muitas vezes envolvidos em operações ilegais. “O teste à Grã-Bretanha tem duas faces. (...) É tempo de transformar esta fonte de vantagens para Moscovo num trunfo estratégico para Londres.” Ousará o governo de Sua Majestade? Neste ponto, May foi muito vaga.

“Os britânicos pouco podem fazer”, diz Bruno Tertrais, do think-tank Fondation por la Recherche Stratégique. “Não é um acto de guerra. Mas é muito grave. Encontramos ecos das piores horas da Guerra Fria.”

Diz o IISS: a “guerra” que hoje se trava não é feita com tanques e artilharia, mas com a finança e as redes sociais, com meios que vão da desinformação ao assassínio.

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