Concorrência. Um valor, uma lei, uma instituição, uma praxis

Boas instituições e boas leis fazem um bom país. Por isso, é tão importante que estejam ancoradas em bons valores e que permitam boa praxis.

Faz todo o sentido assinalar os 15 anos da Autoridade da Concorrência (AdC) com um conjunto de iniciativas que têm por objetivo divulgar as diversas vertentes da concorrência junto de um público tão vasto quanto possível. Relevaria quatro dessas vertentes: um valor que transcende a esfera económica; uma lei que consagra um conjunto de normas jurídicas de um estado de direito, de que a concorrência constitui um pressuposto importante; uma instituição que assegura, enquanto entidade reguladora independente, a autoridade desse estado de direito em matérias de concorrência; e uma praxis que visa a promoção e defesa da concorrência, tão fundamental para a inovação e competitividade das empresas.

Um valor

A concorrência é um valor fundamental da civilização ocidental, muito para além de ser o paradigma de referência das suas economias de mercado. O facto de os países ocidentais terem atuado de forma descentralizada entre si e, desde a Renascença, terem progressivamente evoluído no sentido da separação entre estado e religião, do estabelecimento do estado de direito, do reconhecimento da iniciativa privada e do direito de propriedade, e da consagração da liberdade de expressão e de pensamento científico, criou raízes concorrenciais, que de forma capilar, tanto têm contribuído para o progresso das sociedades mais avançadas e para o bem-estar dos seus cidadãos.

Desta forma, a concorrência é um valor que se traduz num bem comum de qualquer sociedade moderna e num bem público de qualquer economia de mercado. E expressa-se através de uma cultura de concorrência, cujo objetivo, em termos económicos, é a promoção e defesa de mercados mais concorrenciais e benefícios mais tangíveis para os consumidores.

Uma lei

Em matéria de lei, a concorrência traduz-se num normativo jurídico nacional articulado com direito de concorrência da União Europeia. Qualquer destes ordenamentos jurídicos tem como cúpula os tribunais competentes, nacionais e europeus, com o primado do direito europeu sobre o direito nacional.

É um direito com particularidades próprias, nomeadamente as que se referem de seguida. Há uma matéria em que a competência é da exclusiva responsabilidade da Comissão Europeia: ajudas de Estado. Há uma matéria em que o governo pode ultrapassar um “não” da AdC. É o caso de uma operação de concentração de empresas, em que o governo entenda que há interesses nacionais, que não os de concorrência, que sejam melhor servidos por essa concentração. O mesmo acontece em países como a França ou a Alemanha. E em certas sociedades, como a portuguesa, há valores considerados mais altos do que a concorrência, como a salvaguarda da diversidade de opiniões na comunicação social, em que um “não” do regulador setorial a uma concentração de empresas de comunicação, não pode ser ultrapassado, nem pela AdC, nem pelo governo.

Em síntese, Portugal está bem servido, (i) a nível nacional, com a sua atual lei da concorrência, Lei n.º 19/2012 de 8 de maio, e o restante dispositivo jurídico e institucional de concorrência, e (ii) a nível europeu, com os artigos 101 e 102 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e a restante legislação e jurisprudência europeias em matéria de concorrência.

Uma instituição

A promoção e defesa da concorrência em Portugal está confiada à AdC, que, enquanto regulador independente, tem de ser, não apenas uma boa instituição portuguesa, mas igualmente uma boa instituição europeia.

De facto, a AdC faz parte do Sistema Europeu de Concorrência, que funciona com base no quadro institucional da Rede Europeia de Concorrência (European Competition Network), da qual são membros a Comissão Europeia e as autoridades de concorrência nacionais. E existe, nesse âmbito e em outras instâncias, uma interação muito intensa entre a Comissão Europeia e as autoridades de concorrência nacionais, a nível multilateral e bilateral. Por isso, o trabalho da AdC tem de estar bem inserido no contexto europeu e os benchmarks do seu desempenho têm de ser nacionais, europeus e internacionais.

A AdC está ainda unicamente posicionada para contribuir para um dos grandes desígnios nacionais: o interface com os países de língua portuguesa, no que se refere à promoção e defesa da concorrência. A AdC é, aliás, membro fundador da Rede Lusófona da Concorrência.

Em síntese, a AdC será uma instituição cada vez mais efetiva se, com o acumular de conhecimentos de experiência feitos, conseguir continuar a imprimir uma marca decisiva e uma maior certeza regulatória nas suas análises, investigações, interfaces com os stakeholders, decisões processuais e não processuais e defesa em tribunal das decisões objeto de recurso, tudo fruto do seu capital humano, organização interna e financiamento compatível. Desta forma, cumprirá bem o seu lema: servir a concorrência.

Uma praxis

A promoção e defesa da concorrência é um serviço público que se afirma pelo seu profissionalismo, competência, isenção, independência e tempestividade. E o interesse público, na concorrência como em outros assuntos relevantes da sociedade, exige um constante trabalho jurídico e económico, feito com integridade intelectual, rigor analítico e respeito pela evidência empírica.

Na defesa da concorrência, a AdC atua com base nas suas prioridades e nos seus poderes de sancionamento, de supervisão e de regulação, através de processos de contraordenação e de controlo prévio de concentrações, de forma coerciva e/ou sancionatória. Por isso, a dissuasão resultante da atividade processual é fundamental no dispositivo de defesa da concorrência.

Na promoção da concorrência, a AdC divulga o seu trabalho e as suas mensagens e identifica e analisa questões que, não sendo à partida infrações à lei da concorrência, podem, no entanto, afetar o funcionamento concorrencial dos mercados. Aqui, a atuação é indireta, não coerciva, através de análises jurídicas, estudos de mercado e recomendações fundamentadas. No caso de políticas ou entidades públicas, a adoção de recomendações da AdC não depende desta, mas de decisões legislativas ou governamentais.

No meu mandato, destacaria sobretudo cinco desempenhos: (i) uma atuação processual cujo escrutínio e comparações, no tempo e no espaço, dispensam juízos em causa própria; (ii) o esclarecimento do funcionamento do mercado dos combustíveis líquidos, na sequência da subida explosiva dos preços internacionais em 2008; (iii) a consolidação institucional da AdC, que a dotou de uma melhor capacidade de atuação; (iv) o projeto da atual Lei da Concorrência, em que a iniciativa, conceção e elaboração ficaram a dever-se exclusivamente ao conselho e quadros da AdC; e (v) as 26 audições parlamentares em 5 anos e meio, número sem precedentes até então ao nível de qualquer regulador, que permitiram a prestação de contas, devidamente documentada e em sede própria, de toda a atuação processual e não processual da AdC.

Em síntese, a concorrência tem de ser sempre uma praxis de excelente serviço público, de promoção e defesa de um bem comum, com recurso pleno a todo o dispositivo legal, institucional e humano capacitado para o efeito, em tempo oportuno, transparente, com conhecimento do funcionamento e da fronteira, nacional ou europeia, dos mercados, sem demagogias, nem populismos.

Conclusão

Boas instituições e boas leis fazem um bom país. Por isso, é tão importante que estejam ancoradas em bons valores e que permitam boa praxis.

O objetivo é claro. Temos de continuar a fazer:

  • da concorrência, um valor cada vez mais disseminado em Portugal;
  • das normas jurídicas da concorrência, nacionais e europeias, pilares cada vez mais sólidos de um estado de direito, ancorado em pressupostos concorrenciais;
  • da Autoridade da Concorrência, um regulador independente cada vez mais efetivo; e
  • da promoção e defesa da concorrência, uma praxis que sirva cada vez melhor o país, em geral, e os seus consumidores, em particular.

Se assim o fizermos, a concorrência será, ainda mais, o paradigma do nosso futuro.

 

Presidente da Autoridade da Concorrência, Março 2008 – Setembro 2013, cujo conselho de três membros teve como vogais Jaime Andrez e João Espírito Santo Noronha.

Sugerir correcção
Comentar