Desidério Lázaro: quando o jazz não tem medo do rock

Reflexão musical sobre os papéis assumidos na idade adulta, Moving é também espelho de uma cada vez maior solidez do músico enquanto autor. Um disco de qualidades terrenas.

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Não é que tenha apagado completamente o rasto desse passado, mas o novo álbum de Desidério Lázaro baixa a música do saxofonista para um nível mais terreno. Depois de um primeiro combustível encontrado na espiritualidade – próprio de quem se afundou no jazz à boleia de John Coltrane e, por momentos, tomou um mundo alheio por seu – e de ter cavalgado composições inspiradas por um curso de meditação, um retiro e a prática de uma construção pessoal interior moldada pelo budismo, quis continuar a explorar a música como um prolongamento do autoconhecimento a partir da experiência da paternidade. Moving é filho dessa chamada brusca à realidade, mas também das leituras que voltou a fazer, sobretudo Nietzche e Camus, que o colocaram no encalço de uma linguagem musical assente numa fisicalidade mais palpável, em que as tentações etéreas cedem lugar às corpóreas.

Para isso é fundamental o facto de Desidério ter seguido na direcção contrária ao anterior Subtractive Colors. Quando gravou o disco anterior, em 2015, escrito quase de rajada para aproveitar a oportunidade súbita de ocupar três noites no Hot Clube e fazê-lo com material e uma formação inéditos, a escrita febril do saxofonista revelou-se através de um sexteto (acrescentado de duas vozes) com ambição orquestral e em que explorava, com resultados notáveis, um pensamento e uma prática autoral. Para Moving, Desidério desbastou a formação e o reportório, começou a sentir necessidade de partilhar estúdio e palco com músicos com quem vinha tocando há vários anos – João Firmino (guitarra), Francisco Brito (contrabaixo) e Joel Silva (bateria) –, e de procurar uma música mais aberta e menos circunscrita pelas secções escritas.

A escolha dos músicos que o acompanham, neste caso, aprofunda uma vontade de Desidério em trabalhar temas com a elasticidade suficiente para se acercar sem pudor de um imaginário rock. “Tenho muito a influência do rock dos anos 70, a música a que fui exposto através dos meus pais”, conta ao Ípsilon. “Falo principalmente de Pink Floyd, Dire Straits, Supertramp e Led Zeppelin. Acho que algumas dessas influências são um pouco óbvias ao escutar as músicas do Moving – e até mesmo do Samsara (2012).” No novo disco, essa influência, sopesada e com suficiente discrição para não secar qualquer uma das composições, infiltra-se sobretudo através de um guitarrista que, formado pelo jazz, partilha com Desidério a escapada até cenários rock, em particular através da banda de rock psicadélico Cassete Pirata, em que assume voz e guitarra.

“Essa nova experiência em que o Firmino é não só acompanhador como vocalista deu-lhe mais consciência acerca do acompanhamento da melodia, sobre o papel do melodista e da guitarra num contexto não tão improvisado”, explica Desidério sobre a presença fundamental de Firmino (também conhecido por Pir), assumindo um lugar quase central nos temas (por demais evidente em Memories of a forgotten past, nos arrabaldes de uns Radiohead em poupança de electricidade) e acompanhado de uma louvável capacidade em manobrar a salvo dos mais redundantes clichés guitarra em terras do jazz. À semelhança de Firmino, também Francisco Brito toca regularmente com músicos pop/rock e Joel Silva começou no heavy metal antes de guinar para destinos jazzísticos.

“Cada vez mais”, acredita Desidério, “para se abraçar projectos que tenham de tocar em pontos diferentes a nível de estética, é preciso também estar com músicos que tenham essa música na cabeça, porque a competência nem sempre é suficiente – não basta tocar bem e dominar a tradição do jazz, é preciso estar aberto e atento a outras formas de interpretar.” Esse background comum aos quatro faz com que o músico afirme que “algo de extraordinário tem acontecido com esta banda”: “Não preciso de liderar, quase não preciso de dizer nada.”

Puzzle uniforme

Se agora se refere a Nietzche, Camus e Kubrick como estímulos importantes para a criação de Moving, em Subtractive Colors Desidério compusera toda uma suite em quatro partes inspirada pelo videojogo Legend of Zelda. Embora desta vez não haja uma ligação tão explícita, a verdade é que é impossível ouvir a toada vertiginosa e abrasiva em modo rock abespinhado do tema-título sem imaginar um ecrã tomado por um jogo de acção e obstáculos constantes ultrapassados a um ritmo desenfreado. Uma decorrência provável do investimento que o músico tem feito nos últimos anos na construção de um portefólio de música para videojogos e para cinema, inspirado pela prática do compositor John Williams (autor de um sem-fim de bandas sonoras, entre as quais as séries Star Wars, Indiana Jones, Harry Potter e boa parte da filmografia de Steven Spielberg) de se obrigar a compor a um ritmo diário.

Desse ginásio mental e criativo havia de surgir uma parcela considerável de Moving. Como acontece com muitos outros músicos, Desidério Lázaro vai acumulando ideias e guardando esse material à espera de que, às tantas, as várias pontas soltas formem um nó em torno de uma lógica comum. Nesse sentido, o saxofonista crê que está a criar “música para um futuro”, um futuro que se há-de manifestar quando as peças sugerirem um puzzle que, de início, ainda não é possível ver na totalidade. Essa visão de um puzzle uniforme acabou por revelar-se através de dois temas centrais em Moving: Hidden pain, peça escrita para o seu pai; e Lullaby, imaginada para o seu filho. Ambas partem de uma ideia de vida adulta, de largar uma pele passada para assumir um novo papel, de saber ligar os vários momentos de transição na vida e perceber o quanto cada fase, por mais que responda a um ciclo próprio, não deixa de carregar consigo tudo aquilo que está para trás.

Todas estas pistas narrativas são transformadas por Desidério em temas por vezes de um classicismo irrepreensível, outras vezes em rasgos de energia, outras ainda em deambulações emocionais de tom abertamente confessional, ambientes de tensão latente ou comentários a roçar a ironia. Moving, ouve-se como um álbum de reflexão sobre uma idade de conflito de papéis e de equilíbrio entre a recusa em aceitar as partes podres da vida e a paz necessária para aceitar tudo isso sem cair na autocomiseração. E essa é, na verdade, talvez a qualidade mais evidente da música de Desidério Lázaro – a capacidade de ir muito além do mero encadeamento de melodias e harmonias, do compromisso em contar histórias e dotar cada tema de uma tal densidade que é impossível achar que por detrás destas notas há apenas pautas em branco.

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