Carmen Miranda é design – cinco histórias do balanço entre Portugal e Brasil

Tanto Mar — Fluxos Transatlânticos do Design, a nova exposição do Mude, volta a cruzar Portugal e Brasil para rastrear a cultura material do “português plural”.

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Mátria Nuno Ferreira Santos
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Cadeiras Joaquim Tenreiro Nuno Ferreira Santos
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Cadeira Vermelha Nuno Ferreira Santos
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Coordenado de Dino Alves Nuno Ferreira Santos
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Casaco de Filipe Faísca (à esquerda) e capa White Tent Nuno Ferreira Santos
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Xiloteca do Palácio Calheta Nuno Ferreira Santos

É uma exposição que tem como objectivo “incentivar o navegar, as trocas” entre Portugal e Brasil, como diz a curadora brasileira Adélia Borges. Sendo a terceira mostra de um ciclo de três anos sobre a relação dos dois países, conta novas histórias da cultura material do “português plural”, como lhe chama Bárbara Coutinho, directora do Museu do Design e da Moda (Mude) e co-comissária de Tanto Mar – Fluxos Transatlânticos do Design.

São histórias de misturas e apropriações, contaminadas por migrações, colonizadores, colonizados e independências. Há redes ao sol na zona do jardim e arquitectura moderna nas paredes onde estão expostas peças de artistas como Add Fuel ou vestidos de Filipe Faísca, cerâmica de Bordallo Pinheiro e as biografias da calçada portuguesa e do calçadão atlântico do Rio de Janeiro.

Desde 10 de Março e até 15 de Julho no Palácio da Calheta, em Belém, porque as obras continuam atrasadas e não há ainda uma data para a reabertura do museu na sua casa na Baixa lisboeta, a exposição oferece ainda uma amostra do que o Mude fará em 2019 em torno do ilustrador, designer e fotógrafo Fernando Lemos. E mostra três novas aquisições, entre as quais a mesa em azulejo Panacea Phantastica (2003), da brasileira Adriana Varejão.

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Panacea Phantastica (2003), de Adriana Varejão Nuno Ferreira Santos

A Revolta dos Arcos de Moimenta da Beira

Há um vídeo, da SIC, e uma fotografia do Palácio da Alvorada, residência oficial do Presidente do Brasil, em Brasília. E há uma história: a de como o Externato Infante Dom Henrique, em Moimenta da Beira, foi construído como uma homenagem ao palácio, projecto de Oscar Niemeyer cujas colunas em arco são uma escolha conotada com a sua ideologia, comunista. Estávamos em 1960 e Niemeyer autorizara o uso das suas curvas; o Estado Novo também, mas, quando percebe a conotação, manda demolir a obra. Os estudantes, primeiro, e a população, depois, erguem-se contra a decisão e conseguem, com a Revolta dos Arcos de 1962, uma rara vitória contra o regime de Salazar. Este acaba por impor apenas que os arcos sejam tapados. E, como recorda Bárbara Coutinho, um dos primeiros actos do 25 de Abril “foi derrubar os tapumes” e recuperar esse inusitado diálogo Portugal-Brasil sobre arquitectura e poder.

Carmen Miranda é design

“Mais do que uma voz, ela foi uma construção de design”, diz Adélia Borges acerca de Carmen Miranda, “uma das figuras mais conhecidas do Brasil, principalmente do Brasil com z”, esse Brasil que esteve na moda no início do século XX e que mandou a cantora nascida em Várzea de Ovelha (Marco de Canaveses) do Rio de Janeiro para o mundo, transformando-a "numa figura pública da cultura de massas, via Hollywood". Carmen Miranda é design na forma como cresceu em adereços, o turbante exagerado de frutas e lenços que a alongava, os sapatos plataforma que esticavam o seu metro e meio de altura. E quando, nos anos 1930, “se rodeia de adereços, aproximando-se da cultura africana, ganha em sensualidade, em brejeirice”, de balangandã ao peito, fio carregado de amuletos e símbolos – considerado o primeiro design brasileiro de jóias – que com ela dançavam em palco. Voz e design, Brasil imaginado e exagerado, assim a vê a curadora brasileira. 

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O que é que a baiana tem, ouve-se ao fundo, enquanto passa o filme da Disney com Donald, Zé Carioca e, claro, Carmen Miranda. Bárbara Coutinho, por seu turno, associa-a à Cadeira Vermelha (1993), dos irmãos Campana. Ambos, Campana e Carmen Miranda, são marcas – os designers da cadeira de fio grosso vermelho são “exemplo da explosão do design brasileiro”. Tal como a cantora, “partem da cultura popular, reiventando-a,para se transformarem "quase em estereótipos” – que são significativos de “uma cultura de excesso, uma acumulação”, diz a directora do Mude.

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Balangandã do século XIX Nuno Ferreira Santos

A avó Mátria

A artista brasileira Mana Bernardes e a designer portuguesa Susana António – que fundou com o psicólogo Ângelo Compota o projecto A Avó Veio Trabalhar – são apenas duas das responsáveis pela peça que domina quem entra e sai de Tanto Mar: dois poemas bordados sobre linho, com letras azul-cobalto decoradas a dourado. “Eu desenho a relação, não tenho compromisso com o resultado”, explica Mana Bernardes sob a peça Mátria – baptizada por Adélia Borges. “Desenhei uma obra sobre a relação, e a actualização dessa relação, entre Brasil e Portugal. A única coisa que trouxe foi [a ideia de] que seria uma espiral de poesia.” O objectivo: “potencializar o desenvolvimento autoral das avós e da nossa relação”. Susana António prossegue: “As palavras e a poesia vieram das histórias de vida destas mulheres  bordar é um acto social, tecem-se relações e esta peça é o conjunto destas 26 mulheres”, avós dos 50 aos 92 anos. “A espiral é o início e o fim de tudo”, diz Mana Bernardes. Nela vive uma forma que casa com o espaço, com a arquitectura moderna brasileira (Mana é filha do arquitecto Sérgio Bernardes), com a visão da artista sobre Portugal – e com a “visão muito mundana que estas avós têm do Brasil, que vem da televisão, da Carmen Miranda”, completa Susana António. Usaram cinco mil metros de fio e 500 mil horas de trabalho só a bordar, num “processo muito feminista que dá palco e voz às mulheres de várias gerações”, explica Susana António. Mátria é também uma performance, gravada em vídeo, que no futuro deve viajar com a escultura pelo mundo. Encomenda do Mude, a peça “humanizou o processo artístico, para o democratizar” sem “elites” ou “linguagens”, remata Susana António.

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Joaquim Tenreiro, “o pai do móvel moderno brasileiro”

Nasceu em Melo, na Serra da Estrela, fez-se artesão da madeira à imagem do pai e do avô, mas foi no Brasil que ganhou mundo e que deixou lastro. Há três cadeiras, duas impecavelmente verticais, outra relaxadamente curva, num púlpito na exposição, iluminadas com a pompa que a aquisição de duas delas para o espólio do Mude merece. “Portugal deu-me o conhecimento, o Brasil deu-me a liberdade”, cita Adélia Borges, lembrando as palavras do mestre Joaquim Tenreiro, “o pai do móvel moderno brasileiro”. Viajou para o Brasil em 1928, aos 22 anos, e lá estudou desenho e pintura. Foi convidado para fazer mobiliário para a primeira residência particular desenhada por Oscar Niemeyer, em 1942, e a partir daí começou a desenhar mobiliário em harmonia com as curvas da arquitectura moderna. É na cadeira curva, de 1947, que “pela primeira vez usa a diversidade cromática da madeira brasileira”. Cinco variedades de cor às riscas que estão lado a lado com as duas cadeiras agora compradas para o Mude, a Estoril, de 1960, com assento e costas em palhinha, e a sua companheira de assento rosa datada de 1947.

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O orifício engenhoso

“O que liga as varinas, antigas vendedoras ambulantes de peixes em Portugal, os índios do Parque do Xingu, no Brasil, ou as moçambicanas que ainda hoje percorrem longas distâncias a pé carregando lenha ou água?”, perguntam as comissárias da exposição quando um núcleo com rodilhas de pano, chitas, redes e cestaria se revela quase no final de Tanto Mar. A resposta é a rodilha, o objecto que ajuda a equilibrar a carga em cima da cabeça, às flores ou com as cores de uma capulana, e que no centro tem um orifício, nota Bárbara Coutinho. Um orifício como o do essencial banco Mocho de Sérgio Rodrigues, que ajuda a pegar-lhe melhor, ou o do centro do banco Santiago, desenhado por Álvaro Siza como tributo ao Mocho. Com a preocupação central da portabilidade, este núcleo mistura imagens feitas por Adélia Borges em Moçambique e móveis da colecção Francisco Capelo. E é, no fundo, lembra a directora do Mude, “um elogio à inventividade popular” com um simples furo ao centro.

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