Há mais vidas para lá da morte de um edifício

Na Dinamarca e Alemanha, há edifícios inteiramente construídos com materiais reciclados. Em Portugal, ainda se faz "muito pouco". Arquitecta Aline Guerreiro tem um projecto de desconstrução de edifícios como alternativa à simples implosão. E quer começar pelo prédio Coutinho, em Viana do Castelo. Pelo ambiente e economia.

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Em resposta a um desafio do ministro do Ambiente, a Ecotectura vai apresentar um projecto de desconstrução do prédio Coutinho Paulo Pimenta

Quando Aline Guerreiro aconselha alguém a fixar mecanicamente uma placa de cortiça em vez de a colar, para facilitar o trabalho de desconstrução posterior, as reacções dos interlocutores são quase sempre de espanto e incompreensão. Mas por que razão iriam desconstruir um edifício, questionam. “Porque um dia ele vai acabar”, responde a arquitecta como quem faz uma declaração de princípios. A narrativa de um ciclo de vida que pode ser circular em vez de ter um ponto final está ainda muito crua entre arquitectos e demais ofícios ligados à construção. Mas há quem esteja a tentar escrevê-la. E se em vez de implodir um edifício o desconstruíssemos?

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Quando Aline Guerreiro aconselha alguém a fixar mecanicamente uma placa de cortiça em vez de a colar, para facilitar o trabalho de desconstrução posterior, as reacções dos interlocutores são quase sempre de espanto e incompreensão. Mas por que razão iriam desconstruir um edifício, questionam. “Porque um dia ele vai acabar”, responde a arquitecta como quem faz uma declaração de princípios. A narrativa de um ciclo de vida que pode ser circular em vez de ter um ponto final está ainda muito crua entre arquitectos e demais ofícios ligados à construção. Mas há quem esteja a tentar escrevê-la. E se em vez de implodir um edifício o desconstruíssemos?

A ideia andava a ser marinada há muito tempo. Em 2010, Aline e dois amigos arquitectos constatavam que a informação sobre materiais amigos do ambiente era escassa e punham mãos à obra. O Portal da Construção Sustentável pretendia ser “uma coisa puramente informativa”. Mas, ao trabalhá-lo, os amigos descobriam, “por acaso, um negócio”: se o portal se empenha na educação, com a promoção de palestras e aulas abertas em universidades, a Ecotectura nasceu como um atelier onde a sustentabilidade é premissa obrigatória.

As pesquisas constantes à volta de novos modelos de sustentabilidade e construção levaram Aline Guerreiro, 47 anos, a viagens virtuais à Dinamarca e à Alemanha. Nessas geografias, encontrou “edifícios quase inteiramente construídos com materiais reciclados de outras obras” e culturas onde o conceito estava já impregnado. Bem diferente do que se passa em Portugal, onde há "muito pouco" a ser feito e a lei obriga à incorporação de 5% de materiais reciclados em obras públicas. Parece bom? Não se olharmos para a meta europeia para os resíduos de construção e demolição: a partir de 2020, será obrigatório que essa percentagem seja de 70%. E será viável? “A verdade é que é quase impossível.”

Quando há não muito tempo fez um comunicado através da Quercus — organização que integrou em 2003 como voluntária e onde já exerceu vários cargos — para requerer uma incorporação de 25% de reciclados em obras públicas sentiu estar a pedir o impossível: “Todos os jornalistas me perguntavam: ‘mas isso não é completamente disparatado se agora só temos 5%?’”, recorda. “Eu dizia: sim, é difícil, mas daqui a dois anos é obrigatório que sejam 70%.”

A vontade de fazer ainda mais pelo tema ganhou asas quando um dia se cruzou com um anúncio na página do Fundo Ambiental: tinham aberto candidaturas a apoios para projectos de economia circular. Faltavam apenas dois dias para o prazo final de entregas, mas Aline decidiu tentar na mesma. E a sua proposta de “implementação de projectos de construção selectiva”, num “modelo que nunca foi implementado através de casos reais” em Portugal, deu nas vistas.

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Joana Gonçalves

O trabalho foi aprovado em Novembro de 2017 e está em andamento desde o início de 2018, com dois casos práticos, a duração de seis a dez meses e o apoio da Quercus: a desconstrução de um edifício em Castelo Branco para uma obra de reabilitação posterior e a desconstrução — em alternativa à simples demolição — do famoso prédio Coutinho, em Viana do Castelo.

São dois modelos diferentes. No primeiro caso, a equipa de Aline Guerreiro quer aproveitar para fazer uma “demonstração” daquilo que pode ser um projecto deste género. O edifício pertence à Quercus e vai ser transformado num turismo de natureza. A ideia do Coutinho veio, curiosamente, do ministro do Ambiente quando, durante a cerimónia de assinatura dos contratos com o Fundo Ambiental, elogiou o projecto de Aline e em conversa com ela lhe disse em tom coloquial: “Veja lá se começa pelo prédio Coutinho.”

Até o betão pode “encher estradas”

Ela agarrou a ideia. Já solicitou uma reunião e acesso às plantas do edifício à câmara vienense. A partir do momento em que as tenha, pode iniciar um estudo sobre os materiais com os quais o prédio foi feito: “Avaliamos um piso, os outros serão parecidos. Idealmente entraríamos num deles.” Aline Guerreiro sabe que o assunto é sensível. A demolição — que está prevista desde 2000 — já foi adjudicada por quase 1,2 milhões de euros e o presidente da autarquia, José Maria Costa, avançou que tal deverá acontecer no primeiro trimestre deste ano. Se assim for, nota Aline Guerreiro, é apenas uma questão de semântica: se o prédio for implodido “não se salva nada”, se for desconstruído sim.

Mas, afinal, como se organiza um projecto desses? Depois de serem verificados os materiais utilizados, é feita uma avaliação do que é reciclável: a cortiça pode, por exemplo, ser desfeita e reintroduzida noutros processos produtivos; a madeira pode ser reutilizada para várias coisas; até o betão pode ser aproveitado para “encher estradas”.

“Os produtos devem ser vistos atendendo ao seu ciclo de vida: de onde foram extraídos, como vão ser fabricados, transportados, utilizados e, no fim da vida útil, como podem ser reintroduzidos”, explica Aline. “É economia circular.” Portugal está ainda “a anos luz do resto da Europa” nesta matéria: “Esta coisa da sustentabilidade ainda não entra bem na cabeça das pessoas”, lamenta Aline. E mesmo quando há vontade junta-se, muitas vezes, o desconhecimento como perigoso inimigo: “Muitas vezes acham que estão a usar coisas sustentáveis e na verdade não estão.”

É comum, por exemplo, que se usem materiais com a justificação de que eles promovem poupança de energia, achando que, só por isso, são sustentáveis. É o caso de vários componentes de plástico, que têm mais valias do ponto de vista de eficiência energética mas cujo reaproveitamento é quase nulo. E não há razão plausível para a sua utilização: “Temos alternativas, como a cortiça, que tem tudo o que precisamos: sai de uma árvore que se regenera de nove em nove anos, o processo de fabrico é inócuo para o ambiente, o combustível são resíduos da própria cortiça, a própria cortiça liberta um líquido que o faz aglomerar. E no fim da vida útil é desfeito e reintroduzido em novos processos, combustível, novas placas...”

“Uma arquitecta contra as novas construções”

Falta ainda uma educação para o assunto. Nas universidades — e nos cursos de arquitectura em particular — o caminho está por fazer, avalia Aline Guerreiro. Quando em 2008 deu aulas no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, percebeu que os alunos já se interessavam pelo tema, mas que a sustentabilidade não era “uma coisa incutida”. Há cadeiras específicas, explica, mas falta que seja “uma ideia transversal a todo o curso”.

Aline costuma dizer que é “uma arquitecta contra as novas construções”. Os dados do Instituto Nacional de Estatística, sublinha, apontam para a existência de duas casas por família. E isso é excessivo: “Temos muito mais casas do que necessitamos em Portugal” e, em contrassenso, continua a haver “muita gente com carências habitacionais”. Solução? “O ideal seria reabilitar. Não precisaríamos de construir [de raiz] durante muitos anos”.

Tanto uma aposta em (re)construção sustentável como a escolha da desconstrução em detrimento da demolição são opções financeiramente viáveis, garante a arquitecta natural de Lisboa e com atelier em Braga. O seu projecto apoiado pelo Governo quer provar isso mesmo. E pôr em cima da mesa que este modelo pode, em acréscimo, ser uma forma de “promover novos postos de trabalho, dos mais aos menos especializados, e criar novas plataformas de materiais e valorizações de resíduos”.

Pode até ficar mais caro para um empreiteiro que prefere apostar em materiais mais baratos. Mas compensa sempre para quem compra. Fica uma sugestão extra que talvez possa fazer escola: “Os projectos deveriam passar a ser entregues com um projecto de desconstrução”.