Festival Literário revela maior controlo de Pequim sobre Macau

Três escritores viram a sua participação no “Rota das Letras” cancelada por pressão chinesa. Tal como em Hong Kong, estão a ser limitadas liberdades básicas garantidas pela fórmula "um país, dois sistemas".

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A fórmula "um país, dois sistemas" garante a Macau vários direitos e liberdades Daniel Rocha

As autoridades governamentais chinesas pressionaram os organizadores do Festival Literário de Macau “Rota das Letras” para que a presença de três escritores fosse cancelada. A situação é inédita e representa uma “mudança de paradigma”, diz ao PÚBLICO o co-fundador e programador do festival, Hélder Beja. O grande receio é de que a influência do Governo chinês ponha cada vez mais em causa algumas liberdades que o território mantém.

Hélder Beja organiza o “Rota das Letras” desde a sua fundação, há seis anos, e diz ter tido sempre “liberdade total”. Mas tudo mudou nos últimos dias, quando foi anunciado de forma surpreendente o cancelamento das participações das escritoras Jung Chang e Suki Kim, e de James Church, cujos nomes apareciam no programa do festival. O director, Ricardo Pinto, contou ao jornal Hoje Macau ter sido contactado pelo Gabinete de Ligação, a agência que representa o Governo chinês em Macau, para o informar que a visita dos três autores “não era considerada oportuna” e, por isso, “não estava garantida a sua entrada no território”. O director do Gabinete de Ligação, Zheng Xiaosong, disse à imprensa local não conhecer o caso.

Foi com base nesse contacto “oficioso” que a organização decidiu cancelar as presenças dos três escritores. Beja confirmou ao PÚBLICO que esse contacto foi estabelecido, embora não directamente com ele. “Fizeram saber que a presença destes autores não era desejável”, explica o programador, que entretanto anunciou que se irá demitir da organização do festival após o seu fim, a 26 de Março. “Tomei a decisão pessoal de me afastar para mostrar que estas coisas não podem acontecer de ânimo leve”, justifica.

Autores proibidos

Em comum, os três autores têm a característica de terem livros proibidos na China por serem fortes críticos do regime. Jung Chang é autora de Cisnes Selvagens (Quetzal), uma saga familiar passada durante a Revolução Cultural, e de Mao – A História Desconhecida (Quetzal), uma biografia muito crítica do fundador da República Popular da China. Suki Kim é uma sul-coreana radicada nos EUA que esteve infiltrada na Coreia do Norte e escreveu um livro onde relata essa experiência. James Church é o pseudónimo de um ex-agente da CIA que é autor de uma série de policiais sobre a Coreia do Norte.

Porém, Hélder Beja diz que estes autores “não são assim tão diferentes, do ponto de vista daquilo que se possa considerar polémico, de outros que passaram pelo festival”. Beja dá o exemplo de escritores como Murong Xuecun, muito crítico da censura na China, ou de Yu Hua, que apesar de terem parte da obra proibida na China participaram em edições anteriores do festival. Quando pensaram no alinhamento do programa do “Rota das Letras” deste ano, os organizadores nunca anteciparam qualquer problema.

“Achámos sempre que o festival se tinha assumido como um espaço de liberdade de expressão e pensamento”, diz Beja. No entanto, a pressão que os responsáveis pelo “Rota das Letras” dizem ter sido exercida por Pequim marca uma “mudança de paradigma”, afirma o programador.

Pressão crescente

Desde que Portugal transferiu a soberania sobre Macau para a China, em 1999, que o território passou a ser governado através da fórmula “um país, dois sistemas”, tal como Hong Kong. Este arranjo permite que estes dois territórios tenham um sistema de governo próprio, um poder judicial independente e que sejam respeitados certos direitos e liberdades que não existem na China continental, como a liberdade de imprensa ou de expressão.

Mas, nos últimos anos, a pressão chinesa para limitar o espaço de manobra dos que exigem reformas democráticas nestes dois territórios tem aumentado. Em Hong Kong, esse confronto culminou com as grandes manifestações em 2014 levadas a cabo por várias organizações estudantis e activistas pró-democracia que pediam a ampliação do sufrágio directo.

Em Macau, o movimento a favor das reformas democráticas tem menos expressão, mas também denuncia uma pressão idêntica. O deputado da Assembleia Legislativa Sulu Sou tem o mandato suspenso por ter participado numa manifestação considerada ilegal pelas autoridades locais e aguarda uma decisão a um recurso que apresentou. O activista diz ao PÚBLICO que o cancelamento das presenças dos autores no “Rota das Letras” representa uma “ameaça grave à liberdade para desenvolver actividades culturais”.

Sulu Sou diz que há vários casos de pessoas, entre professores e activistas de Hong Kong, que se viram impedidos de entrar em Macau nos últimos anos. “Este é um momento difícil para os direitos humanos em Hong Kong, mas também em Macau”, afirma.

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