Arquitectos e Engenheiros: o massacre final

A irreversível herança de destruição da paisagem deixada pelos engenheiros “arquitectantes” está aí para ficar, todos os dias do ano, cinzenta.

A recorrente anedota marialva, “não é suficientemente homem para ser engenheiro, nem mulher que chegue para ser decorador”, na sua perversidade misógina diz-nos muito da condição a que os engenheiros gostariam de votar a arquitectura.

Em artigos anteriores poderei ter dado a sugestão que me era indiferente ver Portugal ser construído por engenheiros civis, porque a concorrência entre arquitectos bastar-se-ia. Quero deixar aqui claro que não, apesar de me desagradarem intensamente os chamados “discursos da classe”. É sempre bom lembrar que a Carlo Scarpa — possivelmente um dos maiores arquitectos do pós-guerra italiano — lhe foi negada de forma sistemática e humilhante a inscrição da Ordem dos Arquitectos porque não tinha uma educação académica formal. Também não me interessam os discursos pomposos e celebratórios que posicionam a arquitectura como “acto cultural” ou “acto de cidadania”, os discursos das “essencialidades” e das “permanências”. São cabalistica moderna para a maior parte dos cidadãos que não queiram fazer casas na Comporta ou hotéis lifestyle. Interessa-me por isso clarificar os aspectos concretos que relevam de forma patrimonial a comunidade e ao território.

É natural que Portugal, enquanto país, esteja mais grato ao legado dos arquitectos que ao dos engenheiros civis. É um facto. Não quero aqui convocar o sem número de engenheiros notáveis que tivemos e temos, ou o enorme prazer que é trabalhar lado-a-lado com figuras como João Appleton, Rui Furtado, Adão da Fonseca ou Miguel Villar, para citar alguns, no debelar de soluções complexas, na clarificação do desenho e da forma, na optimização da estrutura. Não é porem esse o legado substantivo dos engenheiros civis e técnicos em Portugal. A irreversível herança de destruição da paisagem deixada pelos engenheiros “arquitectantes” está aí para ficar, todos os dias do ano, cinzenta, nessa Grande Lisboa feita de edifícios de 11 pisos em enjoativas riscas de tons pastel entrecortadas por marquises de alumínio, ou nos grotescos armazéns e restaurantes em chapa metálica luminescente que parecem não ter fim desde o Algarve a Bragança. Esta sistemática destruição do país por via de licenciamentos desqualificados e construções abortivas na base de um inadmissível compliance camarário tem obviamente o seu canto do cisne na figura do engenheiro técnico Pinto de Sousa. Não deixa por isso de ser um paradoxo que o seu consulado tenha sido o momento que consagrou finalmente o Direito à Arquitectura como um acto exclusivo dos Arquitectos, em grande parte resultante do trabalho de esclarecimento de Helena Roseta e João Rodeia.

Nos anos de chumbo da troika, os engenheiros técnicos, alegando a escalada de desemprego na classe, conseguiram reverter a lei e voltar a poder assinar projectos de arquitectura, perante uma vergonhosa cedência do PSD, que, socorrendo-se de convenientes directivas comunitárias, teve Luís Montenegro como campeão parlamentar desta engenharia.

O que está em jogo, em boa verdade, é uma guerra de competências sobre o que cada profissional pode comer do cadáver do antílope incauto. Os engenheiros pretendem fazer a coordenação do projecto sob a prerrogativa da tal masculinidade (“it´s a man’s job”), como se a sua base técnica, a sua alegada objectividade, fosse um racional de sucesso. Quem conhece o universo do projecto de arquitectura sabe o quão absurda essa proposta é. Já agora, por que não entregar a engenharia de vias aos arquitectos? Na verdade, a mais bela autoestrada da Europa, entre Airolo e Chiasso, é desenhada por um arquitecto, o suíço-italiano Rino Tami nos anos 60. E se a ponte da Arrábida de Edgar Cardoso é uma obra sublime, pôr pilares 20x20 numa residencial em Leiria à beira da Nacional 1 e chamar-lhe arquitectura é mau demais.

A verdade é que a Engenharia Civil há muito está em perda. Lá vai a era de Duarte Pacheco e do seu instituto. Lá vai o glamour das grandes obras de arte, da engenharia como expressão de poder do Estado. Lá vai o tempo dos engenheiros políticos, banqueiros e empresários. No entretanto, as médias de entrada nas universidades colapsaram mais ainda que as de arquitectura e o desemprego bateu à porta em números inesperados, com a tecnicidade do curso a revelar-se paradoxalmente menos flexível ou exportável que a arquitectura. Quando Gonçalo Byrne ganha o concurso para uma sala de concertos em Genebra de 300 milhões de euros, fá-lo sozinho, por sua conta e risco. Quando uma empresa de engenharia portuguesa anuncia o projecto de uma auto-estrada no México é seguramente a reboque de uma Mota-Engil. 

Por fim, a ideia de uma sociedade tecnocrática territorialmente conformada pela engenharia desagrada-nos como povo e comunidade. Já basta a destruição do território feita nas últimas décadas, um legado de dolorosa acupuntura que deixamos às endividadas gerações vindouras.

Num tempo de virares de página, num tempo em que todas as estrelas estão alinhadas, com PS, BE e PCP no poder, e com uma Ordem dos Arquitectos frontalmente contra o projecto-lei, será interessante perceber se esta eminente reversão que não traz votos é, afinal, reversível. Chamemos-lhe “Lei Montenegro para Destruição da Paisagem Portuguesa”. Pode ser que este título inspire os deputados a votar contra, ou o Presidente a vetar.

Portugal tem uma divida de gratidão para com a arquitectura e um dever para com o território. O prestigio e património da arquitectura portuguesa não é uma falácia ou uma operação de marketing para consumo interno. Não podemos continuar indefinidamente a destruir Portugal, e, simultaneamente, a usar os prémios Pritzker como o jarrão chinês em casa da D. Carlota de Serpa Pimentel.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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