Girar a tômbola da ciência

A revisão por pares é, de facto, uma prática crucial na ciência. É preciso valorizar estes processos e fazer economia de escala das avaliações de qualidade.

Há um ditado que diz “quem dá acha que é muito, quem recebe acha que é pouco”. Ou devia haver, porque na ciência a atribuição de financiamento tornou-se uma enxaqueca para quem pede e para quem dá. Multiplicam-se os manifestos dos cientistas a reclamar mais e melhor financiamento, as taxas de sucesso dos programas nacionais e internacionais baixaram para níveis preocupantes e por vezes o resultado final parece um sorteio. E se fosse? Ou se houvesse um rendimento universal? Ou uma revisão por pares alargada em vez de comités? Ou outra ideia qualquer, mas é preciso pensar nisto muito a sério porque, para além das consultoras que produzem candidaturas, mais ninguém está satisfeito.

Uma candidatura é um instrumento de trabalho fantástico. Confesso que as adoro e encaro com optimismo e expectativa. Uma candidatura é uma oportunidade para explicar como podemos mudar o mundo. Ou devia ser. As candidaturas falhadas – no sentido em que não foram bem-sucedidas na obtenção de financiamento, embora a própria candidatura possa gerar ganhos de organização e colaboração – estão a implicar uma quantidade excessiva de trabalho no quotidiano dos investigadores (e dos financiadores), ameaçando a sustentabilidade de um sistema que é particularmente agressivo para os mais jovens.

Muitos já fizeram as contas aos custos das candidaturas versus financiamentos atribuídos e, desde os cinco séculos australianos (BMJ Open 2013, 3) às contas da European University Association, concordamos todos que é demais. Daí a surgirem alternativas falta alguma criatividade mas, principalmente, a vontade política de discutir e ensaiar metodologias que questionem o status quo.

Há uma semana decorreu no Teatro Thalia, e acolhido pelo MCTES, o 2.º encontro anual da plataforma de interface à ciência, que reúne dezenas de profissionais de gestão e comunicação nacionais. O orador convidado foi Johan Bollen, da Universidade de Indiana (EUA), que apresentou um modelo alternativo de financiamento, inspirado pelos algoritmos de busca de páginas na Internet, e que envolve a atribuição de um rendimento inicial combinado com a decisão distribuída na comunidade científica alargada (EMBO reports 2014, 15(2)).

A relutância contra metodologias igualitárias ou aleatórias tem por base a crença generalizada na revisão pelos pares e na meritocracia como praxis fundamental da comunidade científica. Acontece que a revisão pelos pares é longa, cara e tem vindo a enfrentar críticas cada vez mais duras, desde enviesamentos de género, afiliação, idade e etnia, até a sérios conflitos de interesse e uma reconhecida aversão ao risco. Mais, o mérito (essa qualidade transiente) é frequentemente uma consequência e não tanto uma condição inicial.

Nem de propósito, foi agora publicado no ArXiv (um arquivo para preprints de artigos científicos) um estudo que modela os efeitos do talento e da sorte no sucesso de carreiras científicas (arXiv:1802.07068v2). O modelo testa vários cenários e conclui que, quando reconhecemos a serendipidade, a estratégia mais eficiente para o financiamento público da investigação é a divisão igualitária. Mesmo um critério misto, em que se distribui 25% aos mais bem-sucedidos e o resto de forma universal, é mais eficiente do que a estratégia elitista de financiar os indivíduos já bem-sucedidos.

É verdade que esta ideia de distribuir os fundos de forma universal e igualitária é surpreendente ou mesmo perturbadora. A narrativa da ciência está dominada pelo discurso da excelência e é evidente que nem as pessoas nem os projectos são todos iguais sendo preciso inspirar e compensar os extraordinários. Mas quer isso dizer que reforçamos continuamente essa diferença com todos os instrumentos? É isso a competitividade, sob pena de não densificar o sistema? Porque com a distribuição alargada vem o perigo da dispersão dos fundos. Em Setembro de 2017, Vaesen e Katzav (PLOS One 12(9)) analisaram os sistemas norte-americano, britânico e holandês à procura dessa diluição, particularmente inaceitável no caso de áreas científicas de alto custo. Não a encontraram, e embora seja verdade que aqueles são sistemas com níveis substanciais de financiamento, estas ideias merecem atenção e talvez possamos começar por pilotos de instrumentos específicos para a coesão e a solidariedade.

Sabemos bem que o segredo de um bom portfólio de financiamentos é a diversidade, o que é válido tanto para o financiado como para o financiador. As candidaturas fazem parte do ciclo de vida dos projectos e é importante que sejam reconhecidas como instrumentos úteis e justos e não apenas como um desperdício de tempo e recursos que podiam estar a ser investidos na investigação. A distribuição de dinheiro público é uma responsabilidade grande que as instituições beneficiárias devem partilhar, por exemplo escrutinando mais a qualidade das candidaturas que apresentam.

A revisão por pares é, de facto, uma prática crucial na ciência. É preciso valorizar estes processos e fazer economia de escala das avaliações de qualidade, como acontece com os “selos de excelência” europeus que validam projectos bons que não conseguiram fundos e merecem uma segunda oportunidade noutros esquemas de financiamento, nacionais ou em áreas protegidas dos programas europeus (como as Marie Curie para países com mais baixa performance).

Liberdade, igualdade, fraternidade – uma trilogia mercado, público e filantropia a operar num sistema articulado, que responsabilize todos os jogadores e não faça girar a tômbola dos talentos desperdiçados.

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