O futuro segundo quem o estuda

O Future Today Institute analisa as tecnologias emergentes e o rumo que estas podem tomar. Do relatório deste ano destacamos algumas tendências que vão ser marcantes nos próximos tempos.

Foto
“Sistemas avançados de computação podem agora usar características únicas dos nossos rostos – a estrutura dos ossos, a cor da pele, até vasos capilares – para nos identificarem" SANDRA RIBEIRO

Todos os anos é publicado o relatório do Future Today Institute, uma entidade que se dedica desde 2006 a analisar as mudanças provocadas pela ciência e tecnologia e na sociedade. Todos os anos publica um texto que analisa as tendências do que aí vem e que funciona como um guia prático para o futuro próximo – que tem antecipado bem várias mudanças a nível global. Vale a pena consultar o relatório completo, que tem 225 tendências e assume o crescimento de ano para ano como o resultado de “uma explosão em câmara lenta” na forma como a deriva tecnológica implica mais tecnologia. Destacamos em seguida quatro grandes temas do documento.

Medicina à medida de cada um

A edição genómica é o grande destaque do capítulo dedicado à biologia. Já é uma tecnologia madura com impacto em diversas indústrias e está a impor-se de forma assumida. Mas dentro das tendências gerais da biotecnologia, que vão continuar a ganhar importância no próximo ano, há dois pontos que se destacam: a personalização da saúde e as nanomedicinas. A personalização da saúde passa pela individualização do tratamento, que é feito a partir dos genes do próprio paciente – que acabam por ditar a forma e os mecanismos como cada produto interage com o organismo. Assim, vai existir uma tendência no sentido de tornar individual a medicação e de limitar o impacto dos grandes produtos farmacológicos que são iguais para todos. É de notar que os Estados Unidos estão a desenvolver um projecto-piloto com um milhão de americanos que visa precisamente individualizar a medicina.

As nanomedicinas consistem em robots minúsculos que têm que capacidade de colocar medicamentos directamente nos órgãos afectados e de assistir em cirurgias complexas. É uma tecnologia que tem vindo a ser desenvolvida na última década, visando melhorar as taxas de sucesso das cirurgias e reduzir os efeitos secundários da medicação que se dispersa por todo o corpo. Em simultâneo, estão a ser desenvolvidos micróbios sintéticos que poderão vir a ser úteis na substituição de órgãos num futuro próximo.

A fusão da biotecnologia com os wearables (dispositivos computacionais que se usam directamente no corpo) vai também levar à evolução de sistemas de monitorização, medicação e prevenção de doenças. Um exemplo interessante consiste nas tatuagens de pele artificial que libertam medicação para a corrente sanguínea através de nanotubos e que avaliam a reacção medicamentosa através de microssensores.

E também é interessante o espaço dedicado à extinção do microbioma humano. Esta nova tendência que está a captar a atenção de investigadores um pouco por todo o mundo tem a ver com o impacto que o uso generalizado de antibióticos e os alimentos processados têm no declínio dos microorganismos que compõem um ser humano equilibrado – é algo que ainda se conhece mal e cujos impactos estão por avaliar, pelo que será uma tendência a ponderar no médio prazo

Mais criptorregulação

Os reguladores deverão acabar por apertar a malha sobre um sector que tem funcionado essencialmente à margem de regulação, e que tem aproveitado a lentidão das autoridades em lidar com um fenómeno que não é novo, mas que só recentemente ganhou uma dimensão alargada: a bitcoin e demais critpomoedas. São mais de 1500, embora quase todas sejam desconhecidas do público em geral. E tiveram uma valorização explosiva ao longo de 2017, de que uma boa parte se esfumou nos primeiros meses deste ano.

“Esperamos ver um aumento da acção regulatória com o objectivo de trazer as ICO [ofertas inicias de moedas], as bolsas e a actividade de transacção para dentro das estruturas financeiras existentes”, refere o relatório. Recentemente, a Securities and Exchange Commission, um regulador de mercados financeiros dos EUA, avisou que as plataformas de criptomoedas a funcionar naquele país terão de se registar como bolsas, o que as obrigará a cumprirem mais regras.

Os autores do relatório, no entanto, estão cépticos quanto à possibilidade de estas criptomoedas se instituírem como formas de pagamento generalizado, em parte devido às grandes oscilações de preços: “Para se tornarem verdadeiras divisas, as criptomoedas têm a aceitação e a volatilidade como uma barreira significativa.” Para que a bitcoin se tornasse um concorrente do dinheiro era preciso que pudesse ter um câmbio estável com outras divisas, e que pudesse ser utilizada para comprar bens e serviços, o que actualmente só acontece em situações de excepção. “Não antevemos o crescimento da aceitação das criptomoedas como um meio de troca a uma escala alargada”, resume o documento. É, no entanto, mais optimista no que toca ao uso desta tecnologia para o financiamento de empresas, através da emissão de “moedas” que podem representar uma parte do capital da empresa, de forma semelhante às acções. É um fenómeno que tem vindo a ganhar popularidade, mas que também é usado em esquemas fraudulentos.

No cenário mais optimista, argumenta o instituto, as criptomoedas seriam amplamente aceites, tanto por reguladores, como pelos consumidores. Mas, diz o relatório, o mais provável é um cenário de “aceitação limitada”.

Os riscos das várias Internets

Nas tecnologias de informação, destaque para três tendências importantes. A primeira é a pulverização da Internet em diversas redes com conteúdos e permissões diferentes. Já se sabe que países como a China impõem grandes limitações aos conteúdos que se podem colocar e consumir na Internet, mas com as novas lógicas da lei da protecção de dados da União Europeia o que se está a criar é efectivamente a divisão da internet em “splinternets”, superauto-estradas fragmentadas de informação desenhadas a partir das fronteiras geográficas e geopolíticas.

Outra preocupação assinalável, que entra pela primeira vez nesta edição, é a da cibersegurança relacionada com eleições. Depois do ataque russo às presidenciais americanas, vai existir uma atenção redobrada às eleições para o Congresso norte-americano já este ano, algo que se pode verificar também noutros países – vários relatórios internacionais apontam para os riscos nos países dentro da esfera de influência russa, num raio de acção que atinge os Balcãs. Directamente relacionado com este tema, também se destaca a crescente importância da manipulação dos conteúdos na internet. Os riscos de um “califado digital” ainda não estão postos de parte, visto que existem alguns sinais de reactivação do Estado Islâmico nas redes sociais e a “viralização” de conteúdos de pendor terrorista não desapareceu. Em simultâneo, e por causa destas tendências, está a apertar-se o controlo governamental sobre as grandes empresas tecnológicas.

Máquinas que nos conhecem

Do reconhecimento facial passaremos ao reconhecimento de tudo. Não é novidade que as grandes empresas tecnológicas são cada vez mais capazes de conhecer os gostos e hábitos dos utilizadores, normalmente para lhes venderem produtos ou para venderem anúncios publicitários direccionados. Mas tecnologias avançadas de reconhecimento facial, associadas à sofisticação dos algoritmos capazes descobrir padrões e antever comportamentos, dão novas ferramentas para perceber o que as pessoas fazem e são – o que tanto pode ser usado por empresas, como por Estados totalitários.

“Sistemas avançados de computação podem agora usar características únicas dos nossos rostos – a estrutura dos ossos, a cor da pele, até vasos capilares – para nos identificarem. As impressões faciais são as novas impressões digitais”, lê-se no relatório.

A tecnologia está a espalhar-se e os custos já são suficientemente baixos para que tenha chegado à electrónica de consumo. A grande novidade do recente iPhone X foram os sensores capazes de identificar (embora não de forma perfeita) o rosto do proprietário, mesmo em situações de pouca luminosidade. Estes sistemas de identificação facial também existem nos telemóveis Android. Podem ser usados para desbloquear os aparelhos ou para autorizar pagamentos. Há, no entanto, aplicações da tecnologia que nada têm que ver com a comodidade do consumidor.

Na China (um país conhecido pelo nível elevado de vigilância estatal), há polícias que foram equipados com óculos de realidade aumentada, nos quais imagens digitais se sobrepõem ao mundo físico que os agentes têm à frente. Os óculos permitem visualizar informação sobre as pessoas para quem olham. Estes aparelhos recorrem a tecnologia que está a ser desenvolvida por uma startup local e, de acordo com dados oficiais, permitiram a captura de sete suspeitos nos primeiros dias de utilização. A tecnologia é capaz analisar os rostos (incluindo no meio de uma multidão) e compará-los com uma base de dados de pessoas suspeitas ou para as quais haja um mandado de captura.

Para além das características do rosto, também outros elementos estão a ser usados para identificar pessoas, aponta o Future Today Institute. A voz é um deles e tem estado no centro de uma nova categoria de produto: as colunas inteligentes, que estão a ser comercializadas pelo Google, Apple, Microsoft e Amazon.

As tecnologias de reconhecimento terão o seu expoente máximo quando começarem a detectar traços de carácter, observam os autores do relatório. Ferramentas de análise vão “misturar dados, comportamentos e preferências para mapear a personalidade – e prever como uma pessoa vai provavelmente reagir em qualquer situação”. Isto poderá ser usado por empresas para personalizarem as ofertas para cada cliente, para a definição de estratégias de campanha política (foi o caso da campanha de Donald Trump) ou por empregadores para preverem o desempenho provável de cada trabalhador.

Sugerir correcção
Comentar