Trump, o lança-granadas

A decisão de Trump de começar por cima é diferente de tudo aquilo que já foi tentado ao longo de décadas pelos EUA para conter a ambição nuclear de Pyongyang. Mas o risco de falhar não deixa qualquer margem para regressar à mesa das negociações.

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1. Com a habilidade diplomática própria de quem não é louco, o líder coreano, Kim Jong-un, parece ter levado o Presidente americano, Donald Trump, a deixar-se cair numa armadilha cuidadosamente preparada. Kim utilizou os Jogos Olímpicos de Inverno, na Coreia do Sul, para retocar a sua imagem perante os olhos do mundo. Enviou os seus atletas e um grupo simpático de cheer-leaders, proibidas de falar com quem quer que fosse, e algumas altas individualidades do regime, para dar cor política à sua iniciativa. Já conseguiu o que queria: uma capacidade nuclear que lhe permite negociar directamente com os Estados Unidos. De igual para igual. Encontrou em Washington um presidente em cuja imprevisibilidade resolveu apostar. Outros agiriam com todo o cuidado, preparando o terreno e as saídas possíveis — Trump reage por impulso. Foi o que aparentemente aconteceu. Trump, numa decisão que não estava prevista nem pelo seu staff, nem pelo Departamento de Estado, aceitou o convite que lhe foi entregue em mão por um emissário do Governo da Coreia do Sul, para uma cimeira com o seu arqui-inimigo norte-coreano. Lá para Maio, diz a Casa Branca. Kim ganhou o primeiro round. Haverá tempo para que os Estados Unidos preparem uma qualquer estratégia para o encontro? Haverá encontro? Por enquanto, a única coisa que a Casa Branca diz é que foi uma “vitória diplomática” do Presidente, que encostou Kim à parede. Será? É difícil de acreditar. O chefe do Departamento de Estado, Rex Tillerson, disse imediatamente que foi uma decisão apenas do Presidente. Ele próprio, durante a sua deslocação a África, tinha dito aos jornalistas que ainda se estava longe do início de negociações. Ontem, a Reuters anunciava que Tillerson cancelou o seu programa africano por um dia, por se encontrar indisposto. A Coreia do Sul, cuja segurança é garantida pelos EUA, tem hoje uma liderança mais aberta a negociações e faz pressão sobre Washington.

2. Há também a tese contrária, difícil de aceitar com os elementos que temos. Teria sido a constante ameaça de Trump de lançar “o fogo e a fúria” sobre a Coreia do Norte, ameaçando com a força para não ter de a usar, que obrigou Kim a ceder. Será? Ninguém, em Washington, estava à espera da resposta imediata de Trump ao convite de Kim. O mundo inteiro saudou a cimeira, quanto mais não seja porque alivia a tensão, depois de um ano em que a escalada verbal entre Kim e Trump se aproximou da demência e um conflito militar passou a ser um risco que ameaçava o mundo inteiro. A oportunidade foi criada por iniciativa do Governo de Seul, que terá tido um papel fundamental. Esta mudança espectacular entre os dois protagonistas do confronto também pode ser vista como o resultado dos receios partilhados pelos aliados dos EUA na Ásia, de Tóquio a Seul, passando pelos países do Sudoeste asiático, em relação ao compromisso americano para com a respectiva segurança. Com um efeito colateral  — se as negociações prosseguirem, os ditadores e os párias olharão para o exemplo da Coreia do Norte como a confirmação de que a bomba atómica é a única linguagem que os EUA entendem. Se as negociações não chegarem à desnuclearização, o exemplo coreano será lido como um sinal de fraqueza dos Estados Unidos. Se os Estados Unidos abandonarem as negociações, Kim terá melhores condições para os culpar e o risco de conflito aumentará. Dizer que a cimeira corresponde a uma estratégia americana bem pensada é dar um salto demasiado grande. “Esta é uma questão muito séria”, diz Wendy Sherman, uma experiente diplomata que trabalhou com Clinton, citada pelo New York Times. “Não é um reality show. É a nossa segurança nacional que está em causa.”

3. Por que “cedeu” Kim agora? Para além da tese da força bruta, o círculo de Trump acrescenta que as sanções deram um contributo decisivo. Alguns especialistas americanos admitem que, economicamente, Kim esteja num aperto, que já não seria o primeiro, com a queda abrupta das exportações e das importações, incluindo para a China. O que se sabe é que, quando Bill Clinton, em 1994, conseguiu um acordo com Pyongyang, oferecendo ajuda económica imediata e centrais nucleares civis, a maioria da população estava a passar fome, no verdadeiro sentido da palavra. É difícil de imaginar uma situação tão dramática. O pai de Kim acabou por continuar o seu programa nuclear. A segunda tentativa de Clinton, em 2000, também falhou, desta vez por causa da chegada de George W. Bush à Casa Branca. A Coreia do Norte fazia parte do seu “eixo do mal”, com o Iraque e o Irão. A sua política era a do “quanto pior melhor.

4. Apesar das ofertas significativas de Pyongyang que o enviado de Seul levou a Washington — a promessa de congelar os ensaios nucleares e aceitar os exercícios militares conjuntos da Coreia do Sul e dos EUA —, não se vê como Pyongyang possa abdicar das armas nucleares, justamente o factor que lhe permite garantir a sobrevivência do regime. Além disso, a família Kim não é de confiança quando se trata de cumprir acordos. O problema é o que quer em troca. Provavelmente, a saída das tropas americanas da Coreia do Sul. É aí que a China aplaude. É esse o seu grande objectivo estratégico, tentando provar aos aliados americanos que só têm vantagem em dar-se bem com ela. O Japão tem o interesse contrário. Shinzo Abe saudou a iniciativa, acrescentando que irá a Washington falar com Trump já em Abril. Não devia ter a menor ideia do que se estava a passar, apesar de ser o maior aliado dos EUA na Ásia-Pacífico. Não informar os aliados é outro argumento a favor de que não havia qualquer estratégia previamente definida. Fica também a dúvida sobre o papel de Pequim nesta jogada de Kim e da inesperada resposta do seu homólogo americano. É mais uma incógnita fundamental sobre o que vai acontecer agora. Apenas sobra uma coisa: a decisão de Trump de começar por cima é diferente de tudo aquilo que já foi tentado ao longo de décadas pelos EUA para conter a ambição nuclear de Pyongyang. Mas o risco de falhar não deixa qualquer margem para regressar à mesa das negociações.

5. Ao mesmo tempo que lançava a “granada” norte-coreana, o Presidente tirava a cavilha a outra, cujos efeitos a médio prazo podem ser devastadores. Cumprindo uma promessa da campanha, anunciou a aplicação de taxas aduaneiras à importação de aço e de alumínio (25% e 10%, respectivamente). Ninguém conseguiu dissuadi-lo, nem o seu principal conselheiro económico, que já apresentou a demissão, deixando o campo aberto aos arautos do proteccionismo. Os Estados americanos com grande concentração de indústria automóvel e aeroespacial temem um desastre. Os que ainda têm alguma produção de aço batem palmas. A medida é controversa. Em vez de atingir a China, que só exporta para os EUA 3% da sua produção (embora inunde os mercados mundiais com o seu aço, chocando com os interesses europeus e americanos), atingiu os aliados. O Canadá é o maior exportador. O Brasil e o México também, tal como a Coreia do Sul. A Europa já prometeu retaliar. Os chineses fizeram alguns gestos de protesto. O risco de uma escalada proteccionista é real, pondo em causa o crescimento da economia mundial. Quando assinou o decreto, fundamentado numa norma que lhe dá esse poder quando se trata de risco para a segurança nacional, Trump anunciou que não haveria excepções. Já veio dizer que o Canadá e o México não seriam afectados. Ontem, acrescentou que estava a negociar com os “amigos australianos”, para não os atingir. A Europa espera idêntico tratamento, alegando que não constitui qualquer ameaça à segurança americana. No mesmo dia em que assinou o decreto, 11 países da orla do Pacífico assinavam em Santiago do Chile uma parceria transpacífica de livre comércio, que vai do Japão ao Peru, mas que não incluiu a China, negociada por Obama. Trump rasgou o tratado. É caso para perguntar o que vai ganhar com isso. A única exportação americana para a Europa que a Europa dispensava é a de Steve Bannon. O seu antigo estratego veio participar no congresso da Frente Nacional de Le Pen e já esteve em Itália a dar o seu apoio à Liga. Por ele, prefere mesmo os extremos.

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