Somos uma excepção na crise europeia?

Estando nós integrados profundamente na Europa, não poderemos escapar indefinidamente aos abalos sísmicos do edifício europeu – de que as eleições italianas foram um poderoso reflexo.

Face ao europessimismo alimentado pelos resultados das eleições italianas e pelo frouxo compromisso — embora decerto preferível a compromisso nenhum — entre sociais-democratas e conservadores para uma nova coligação na Alemanha, onde é que podemos encontrar sinais de esperança nesta Europa “atingida no coração”, como a descreve Jean Daniel, velho sobrevivente do jornalismo francês? Precisamente, além da França e do europeísmo ainda fogoso de Macron, poucas luzes restam num mapa sombrio, entre a crescente crispação autoritária a leste — que Bruxelas não tem conseguido domar — e a vaga de cepticismo e enclausuramento que se acentua em vários países de tradição política e social mais progressista do Norte, da Holanda à Escandinávia. A sul, a Grécia lambe as suas terríveis feridas e a Espanha — abalada, além do mais, pelo problema sem solução à vista da Catalunha — vai-se arrastando penosamente com um governo minoritário e impopular. É aí que entra a surpreendente excepção portuguesa. Mas será ela mesmo real ou apenas uma miragem passageira, já que não podemos viver na ilusão de uma ilha?

Vivemos aparentemente confortados pelos bons resultados económicos — que também podem ser observados em tantas outras paragens europeias, mas não as poupam às derivas populistas e xenófobas —, beneficiamos de um boom sem precedentes do turismo e da imagem de país aprazível, seguro, acolhedor, com boa comida e belas paisagens, sem esquecer a originalidade de uma solução de governo que, apesar de tudo, se tem mantido estável e promete cumprir o prazo de validade. Last but not the least, não temos de enfrentar os fluxos migratórios que estão na origem dos actuais fantasmas europeus.

Os nossos problemas são basicamente “internos” e têm sobretudo que ver com as profundas desigualdades de rendimento — entre classes e entre homens e mulheres —, o atraso social e económico, as assimetrias regionais, a fragilidade das infra-estruturas e serviços públicos. Ao que se soma, hoje, a explosão brutal de um fenómeno, a corrupção, que tendia a permanecer adormecido e de que descobrimos todos os dias as ramificações sem fim, desde o mundo financeiro ao mundo político sem esquecer, claro, o universo do futebol. Com tudo isto, não faltam razões para ficarmos seriamente preocupados. Daí o paradoxo e a interrogação: será o nosso lado “terceiro-mundista” de pequena nação periférica do Sul que, afinal, ainda nos protege das tremendas convulsões europeias, esse lado invisível ou indiferente aos olhos dos estrangeiros que, a ritmo quase frenético, nos escolhem para viver, em busca de uma doçura perdida nos seus países?

O problema é que, estando nós integrados profundamente na Europa, não poderemos escapar indefinidamente aos abalos sísmicos do edifício europeu — de que as eleições italianas foram um poderoso reflexo. E mesmo que a grande coligação CDU-SPD consiga sobreviver na Alemanha e que em Itália se concretize o cenário político menos pessimista — o de um governo do enigmático M5S com o apoio da esquerda sobrevivente do PD —, a Europa impulsionada por Macron terá de enfrentar obstáculos quase intransponíveis, enquanto não for capaz de se refundar em torno de um núcleo duro de países identificados com a sua matriz original. O que implica, entre outras coisas, construir uma nova arquitectura política e económica que, lembrava-o ontem Miguel Sousa Tavares, não poderá acolher no seu seio aqueles que recusam — como é o caso dos países do Leste — os valores essenciais da civilização europeia, incluindo o respeito pelo Estado de direito. É essa a única resposta que resta contra o europessimismo — mesmo que nós, portugueses, nos julguemos ilusoriamente imunes ao seu contágio.

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