Pátria não abençoada

A destruição do património e a descaracterização arquitectónica e paisagística do centro urbano de Lisboa vai continuar.

Até ver, Portugal ainda é um país e não um protectorado de empresas financeiras. E, por sermos um país, possuímos os serviços indispensáveis à vida de todos nós. Estes serviços essenciais, como as escolas, as universidades, os hospitais, os serviços postais e de telecomunicações, as vias de transporte e os caminhos-de-ferro não são serviços lucrativos e, normalmente, dão prejuízos financeiros. Mas sem isto não há país!

E como somos um país com nove séculos de história e de cultura seria expectável que soubéssemos cuidar do nosso património e do saber acumulado ao longo do tempo. Infelizmente a História de Portugal testemunha o contrário. Parece ter sempre existido um determinismo biológico que compele os portugueses a um comportamento de destruição, não só do saber como do património paisagístico. Convivemos mal com o saber seja ele oriundo dos judeus (expulsos no séc. XVI), dos jesuítas (expulsos no séc. XVIII) ou dos nossos melhores académicos (expulsos no Estado Novo).

No passado conseguimos destruir o melhor do nosso património, em particular nos actos de pura demência anti-religiosa do séc. XIX, demolindo mosteiros e conventos medievais. Podíamos até concluir que o terramoto de 1755 foi o acontecimento que menos destruiu o nosso património ao longo da História. Será que os deuses nos abandonaram sempre?

Este exercício de memória serve para tentar compreender a realidade actual. Porque não há realidades “caídas do céu”. Há sempre um contexto que forma e informa a situação real.

Em 1992 destruímos os institutos autónomos de investigação científica, com o beneplácito dos professores catedráticos, ficando a academia reduzida apenas à carreira docente universitária. A investigação científica, integrada em Centros de Investigação nas universidades (não há ciência nas empresas), com autonomia para executar projectos e atribuir bolsas, depende financeiramente da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), a qual, por sua vez, depende dos fundos comunitários europeus. Estes centros serão em breve também destruídos, por falta de contratação dos jovens investigadores precários que aí trabalham há mais de 20 anos e que são a razão do aumento no ranking das nossas universidades.

Mais uma vez destruímos o saber acumulado por várias gerações e com um custo elevado para este pequeno e pobre país. E porquê? Porque as universidades não efectuam contratos sem financiamento e o financiador FCT financia projectos e bolsas mas não faz contratos permanentes e de longa duração.

Diga-se de passagem que estes investigadores, bolseiros há décadas, são maioritariamente do género feminino. É um pormenor que contextualiza a realidade. São as mulheres que há mais de 30 anos constituem a maioria (entre 60 a 70%) dos licenciados do nosso país. O mundo universitário, tal como o mundo da política, tem carreiras competitivas onde impera o demérito patriarcal, carreiras sujeitas a regras internas que não são nem transparentes nem democráticas. Que ninguém se lamente do descrédito da política!

No domínio da destruição do património edificado, a situação actual é mais visível ao comum dos mortais. Qualquer representante político considera que tem legitimidade para decidir vender, demolir o património edificado e alterar radicalmente a natureza paisagística da cidade de Lisboa, sem ouvir ninguém. O actual executivo camarário, eleito com os votos de menos de cem mil alfacinhas (0,1% da população nacional), decide mandar deitar abaixo o muro ribeirinho do séc. XVI, recentemente descoberto nas obras do Campo das Cebolas, na capital do país*. Este muro medieval “carregado de história” foi destruído porque ocupava o espaço para o estacionamento automóvel, no parque aí construído. Eliminar os carros na capital é o jargão municipal para um público iletrado.

No mesmo Campo das Cebolas já tinha sido destruído o palácio onde viveu Afonso de Albuquerque, nas traseiras da Casa dos Bicos, destruído durante os trabalhos para a XVII exposição europeia de arte, ciência e cultura, dedicada aos descobrimentos (Lisboa, 1983). Data também desta época a destruição dos mais emblemáticos edifícios da Av. da República, em Lisboa.

A destruição do património e a descaracterização arquitectónica e paisagística do centro urbano de Lisboa vai continuar: na estação de Santa Apolónia, no Largo do Rato, na Praça de Espanha, nos conventos medievais do Campo de Santana, etc.

A zona ribeirinha de Lisboa irá ser totalmente ocupada por toda a gama de edifícios modernos, numa “vulgarização para consumo das massas”, sem que alguém de bom senso consiga travar a vaidade dos arquitectos de renome e a ânsia carreirista de políticos menores.

*Por coincidência, esta descoberta arqueológica aconteceu no preciso momento em que era exposta ao público uma carta medieval (séc. XVI) da cidade de Lisboa, retratando o referido muro, como nos mostrava, feliz, a guia do Museu Nacional de Arte Antiga.

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