“Acordo Ortográfico” de 1990: Letal para Idiotas

“Idioleto” quererá dizer "um alegre e letárgico letão com tendências suicidas"?

O substantivo “idiolecto” é termo da linguística, aplicado também quando a linguística se torna auxiliar de outra ciência. É formado a partir do prefixo idio-, do grego ídios, que significa “próprio, particular”, um prefixo que forma palavras portuguesas comuns, como “idioma” (língua própria dum povo), “idiossincrasia” (comportamento particular dum indivíduo) e “idiota” (pessoa particular, incapaz de dar contributo público, ignorante).

Ao prefixo acrescenta-se -lecto, da família de palavras gregas derivadas de léksis, “palavra, fala, dicção”. “Idiolecto” quer, portanto, dizer algo como “emprego linguístico particular” (característico dum indivíduo, por exemplo). O adjectivo correspondente é “idiolectal”.

Acontece que, segundo o “Acordo Ortográfico” de 1990, estas palavras devem escrever-se agora “idioleto” e “idioletal”. Isto é, conserva-se o prefixo idio-, mas a parte da palavra derivada de léksis é truncada da letra e do som “c” (k).

Por conseguinte, transformar “idiolecto/al” em “idioleto/al” ajuda a ocultar o significado da palavra. Sugere, ao invés, outros significados. “Leto” já não provém de léksis, “palavra, fala”, mas do latim laetum que significa “alegre”: resultou na palavra portuguesa “ledo”, muito conhecida da poesia medieval, do episódio de Inês de Castro em Camões — “naquele engano d’alma ledo e cego” — e dum famoso soneto — “Aquela triste e leda madrugada”. Ou então pode vir do grego lethe, que significa “esquecimento”, muito usado em palavras como “letargia”. Ou do latim letum, “morte”, que dá o nosso “letal”. E sem esquecer “leto” relativo à Letónia...

“Idioleto” quer então dizer o quê? Quererá dizer “um indivíduo alegre consigo mesmo”. Ou então “um indivíduo esquecido de si mesmo” (por letargia auto-imposta, porventura resultante duma bebedeira). Ou talvez “um particular suicida” (alguém que é letal para si próprio). Ou ainda “um indígena da Letónia”. Ou quererá dizer tudo isto em simultâneo, isto é, “um alegre e letárgico letão com tendências suicidas”... É assim que é mais simples? É assim que as crianças e os estrangeiros vão entender melhor a língua portuguesa?

De outro modo, não se percebe por que razão o substantivo e o adjectivo foram roubados dum “c” (k) inerente à origem e sentido da palavra. Na verdade, casos de separação da formação das palavras em relação ao seu significado abundam no AO90. No mesmo livro, no mesmo parágrafo, até às vezes na mesma frase, encontramos, não uma ortografia, mas multigrafias: “carateres” e “caracterização”, “espetáculo” e “espectadores”, “setor” e “secção”, “suntuoso” e “sumptuário”, como se fossem palavras de origem e família diferentes, sem relações íntimas entre si. Em vez da simplificação, ficámos com a atrapalhação.

À questão do significado há a acrescentar a questão da pronunciação. O “c” de “idiolectal” não se articula em Portugal? Com efeito, quem sempre pronunciou “idioleCtal” é agora obrigado, pelo AO90 que supostamente respeita a pronunciação, a não articular o “c”. Posso assim pronunciar “idiolètal”, “idiolêtal” ou “idiol’tal”, mas não posso, com toda a correcção, dizer “idiolectal”. E não deliro: o doutor Malaca Casteleiro, autor material do AO90, já declarou afoitamente que quem pronuncia consoantes incómodas como essas pronuncia mal. Quem diz “idiolectal”, “Egipto”, “apocalíptico”, “sector”, articulando as consoantes “c” e “p”, fala mal. Tem de dizer “idioletal”, “Egito”, “apocalítico” e “setor”. É isto que diz o “setor” Malaca [1].

Sinto-me, portanto, corrigido. “Idiolectal” está errado: é “idioletal”. Magister dixit: letal para gente particular(mente) idiota. 

Professor da Universidade de Évora; subscritor da Petição n.º 273/XIII/2.ª ("Cidadãos contra o ‘Acordo Ortográfico’ de 1990")

[1] Em entrevista ao jornal Observador, a propósito de “Egipto”, Malaca Casteleiro afirmou: "Sim, eu tenho alguns alunos que dizem isso, 'eu pronuncio o p!'." Então eu digo-lhe: “Então olhe, pronuncia mal!”.

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