O enigma da casa de Raul Brandão

Na Rua de Raul Brandão, na Foz do Douro, uma placa afixada no n.º 62 indica ter sido ali que nasceu o autor de Húmus. Mas não foi afinal nesta casa que Brandão viveu e escreveu. No livro Cantareira, 61, lançado este domingo, Joaquim Pinto da Silva desvenda o estranho caso da casa esquecida.

A casa da Cantareira é hoje o n.º 254 da Rua do Passeio Alegre
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A casa da Cantareira é hoje o n.º 254 da Rua do Passeio Alegre Paulo Pimenta
A casa da Rua Raul Brandão onde o escritor terá nascido
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A casa da Rua Raul Brandão onde o escritor terá nascido Paulo Pimenta
Ao lado da casa da Cantareira, com um prédio recente de permeio, vê-se parte da fonte de granito que Brandão evoca em Os Pescadores.
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Ao lado da casa da Cantareira, com um prédio recente de permeio, vê-se parte da fonte de granito que Brandão evoca em Os Pescadores. DR
Postal mostrando os tanques na sua localização original.
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Postal mostrando os tanques na sua localização original DR
Envelope enviado por Teixeira de Pascoaes para a morada Cantareira, 61
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Envelope enviado por Teixeira de Pascoaes para a morada Cantareira, 61 DR
Capa do livro de Joaquim Pinto da Silva, com aguarela de Inês Morgado
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Capa do livro de Joaquim Pinto da Silva, com aguarela de Inês Morgado DR

O livro Cantareira, 61, de Joaquim Pinto da Silva, lançado este domingo no Porto, defende que a casa de Raul Brandão na Foz do Douro, a partir da qual o escritor observava essa velha Foz piscatória que tão amorosamente descreve n’Os Pescadores (1923) e em muitas outras páginas avulsas, não é, afinal, aquela onde terá nascido, na então Rua da Bela Vista, junto à Igreja Matriz, mas uma outra, em plena frente ribeirinha, que circunstâncias ainda mal esclarecidas votaram ao esquecimento.  

Com o auxílio de um especialista em Raul Brandão, Vasco Rosa, a quem se deve a edição de numerosos textos inéditos e dispersos do autor de Húmus, e de um grande conhecedor da história do Porto, Helder Pacheco, Joaquim Pinto da Silva apresenta o seu livro às 11h na gelataria Cremosi, na Rua do Passeio Alegre, a uns cem metros daquela que acredita ser a verdadeira casa de Raul Brandão na Foz. O programa da sessão prevê, aliás, uma visita a esta casa, onde irá ser descerrada uma placa com a inscrição “Cantareira, 61” e a informação de que Brandão terá ali escrito Os Pescadores.

As duas casas, a que todos identificam com Raul Brandão, e a que Joaquim Pinto da Silva diz ser “a casa importante”, aquela onde o autor realmente viveu, e que recorda com nostalgia em diversos passos da sua obra ficcional e memorialística, distam uma da outra talvez uns escassos dez minutos a pé, se tanto. Saber, portanto, em qual delas o escritor efectivamente viveu poderá parecer a alguns leitores um detalhe de somenos, mas não o é certamente para alguém que, como o autor de Cantareira, 61, junta à sua profunda admiração pela obra de Brandão uma não menos intensa paixão pela Foz do Douro e respectiva história.

Nascido e criado na Foz, Joaquim Pinto da Silva fundou em 1978 o jornal O Progresso da Foz, originalmente dirigido por José Augusto de Castro, e partiu em 1984 para Bruxelas, onde fez uma pós-licenciatura em tradução literária e trabalhou trinta anos na Comissão Europeia, ao mesmo tempo que dirigia a conhecida livraria portuguesa Orfeu, fundada por Fernando Gandra. Regressado ao Porto há três anos, teve finalmente tempo para investigar devidamente uma dúvida que andava a remoê-lo há décadas. “Conheço bem a Foz, e quando lia as obras do Raul Brandão, as descrições que ele fazia da casa e da paisagem que dela se avistava, ou as referências aos vizinhos, via que nada daquilo colava com a casa da Bela Vista”, explica o autor ao PÚBLICO.

A primeira vez que esta sua perplexidade ficou registada por escrito foi em 2006, quando redigiu o prefácio para a edição de António Cunha e Silva de um disperso de Raul Brandão, História do Batel Vae com Deus e Sua Companha. A propósito da casa da Rua da Bela Vista – há muito rebaptizada Rua de Raul Brandão –, escreveu então o prefaciador: “Podendo ser verdade que ali tenha nascido o homem de letras, não é a partir daquela casa que, quer n'Os Pescadores, quer nas suas Memórias, quer em muitos outros textos e correspondência, o escritor sobrevoa e penetra literariamente na vida piscatória de S. João da Foz do Douro e do lugar da Cantareira”. E remata: “Voltaremos ao tema, noutra oportunidade.”

Doze anos depois, cumpriu a promessa, agora munido de documentos que confirmam o que começara por ser uma intuição de leitor, nascida da leitura de excertos como este, de Os Pescadores: “Sento-me nos degraus da minha velha casa e sei a vida toda desta gente. Ali defronte são os tanques, onde vinte, trinta mulheres de saias arregaçadas lavam a roupa suja. Gritos, rixas, alarido. Um momento de silêncio e ouve-se o bater compassado da maré que vai, vem e lhes molha as pernas nuas.” Da casa da Bela Vista, junto à igreja, Brandão não teria podido ver tanques nenhuns junto ao rio, mas este lavadouro ainda hoje existe, e embora o tenham posteriormente mudado de sítio, postais antigos que Pinto da Silva reproduz no seu livro mostram que no início do século XX estava localizado em frente à conhecida fonte da Cantareira. Ora, noutro passo, Brandão acrescenta: “Pegada à minha casa fica a do Moutinho (…). E do outro lado a fonte de granito (…)”.

Um precursor perspicaz

Pinto da Silva descobriu aliás recentemente que não fora o primeiro a notar as discrepâncias entre as evocações do escritor e a casa da Bela Vista e suas imediações. O autor de Roteiro Sentimental: Douro, Manuel Mendes, relata nessa obra uma visita à casa que lhe indicaram como sendo aquela em que o seu amigo Raul Brandão vivera na Foz e lamenta-se: “Emociona-me contemplar a casa de que o grande escritor nos fala nas Memórias e nos Pescadores, mas verdade seja que não a reconheço (…). Para as traseiras, nem vestígios do quintalório onde a mãe perdia horas esquecidas a ouvir a bica cantar, nem sombras das árvores que ele plantou pela sua mão (...)”. Uma das tristezas do autor de Cantareira, 61 é que Manuel Mendes já tenha morrido em 1969 e não possa louvar-lhe a perspicácia e dar-lhe conta do que descobriu.

Mas durante anos também ele se ficou pela intuição de que tinha de existir outra casa. Só agora a localizou finalmente, e sem margem para dúvidas. Tentaremos resumir os passos que o levaram a esta identificação, mas sem entrar demasiado em detalhes que seriam difíceis de seguir para quem não esteja familiarizado com a topografia e a história da Foz, e porventura só conheça o topónimo Cantareira da célebre canção de Rui Veloso e Carlos Tê sobre Chico Fininho, “o freak da Cantareira” que “conhece os flipados/ todos de ginjeira”.

Antes de falarmos da casa que dá título ao livro, Cantareira, 61 – que corresponde hoje ao n.º 254 da Rua do Passeio Alegre –, tratemos primeiro da outra. Nessa casa onde terá vindo ao mundo o futuro autor de Húmus, no n.º 62 da actual Rua de Raul Brandão, então da Bela Vista, foi colocada uma placa evocativa com os dizeres que aqui transcrevemos, mantendo a sua discutível pontuação: “Nesta casa, nasceu em 12 de Março de 1867, o glorioso escritor Raul Brandão cuja obra é das mais belas da literatura de Portugal”. E por baixo: “Homenagem do Jornal de Notícias, em 1940”. Na verdade, a placa só foi colocada em meados de Fevereiro de 1941, e a respectiva cerimónia, tal como o JN a relata, teve aspectos que, à luz do que hoje se sabe, são curiosos.

A viúva do escritor, Maria Angelina, esteve presente, mas não há registo, observa Pinto da Silva, de que tenham comparecido quaisquer parentes de Raul Brandão. E quando esta ouviu o jornalista Juliano Ribeiro afirmar ter sido naquela casa que o escritor “ergueu uma alta obra que muitos conhecem e admiram”, não só não o corrigiu, como sugeriu que se o espírito de Brandão pudesse falar com os presentes certamente lhes expressaria a sua satisfação: “Junto à sua casa, próximo do mar, a homenagem agradar-lhe-ia profundamente”.

Acontece que, se Joaquim Pinto da Silva tem razão, Maria Angelina “provavelmente não dormiu uma só noite naquela casa” e teria de saber que a casa onde o marido ergueu a tal obra era a da Cantareira, para onde ela própria foi morar logo após o casamento, e que em 1959, quando publicou o livro de memórias Um Coração e Uma Vontade, evocará com ternura: “Instalados na Cantareira, nada nos faltava, louvado Deus; saúde, felicidade e a alegria dos dezanove anos”.

A bica ainda corre

Note-se que o autor de Cantareira, 61 não discute que o autor tenha nascido na casa da rua que hoje tem o seu nome. Para lá da confirmação tácita da viúva, que assistiu ao descerramento da placa, a certidão de nascimento de Raul Brandão diz que este nasceu “na Bela Vista”, embora não indique número de porta, e o investigador conseguiu ainda provas documentais de que essa casa pertencia então a uma tia materna do escritor. Pinto da Silva admite que a mãe de Raul Brandão, Laurinda Ferreira de Almeida, tenha ido ter o filho à casa da irmã, talvez por esta ter melhores condições, mas acredita que a família já então morava na Cantareira.

Não só encontrou o documento em que Germano Brandão, pai do escritor, arremata a hipoteca da casa, datado de 1873, seis anos após o nascimento do filho, mas também um pedido, este de 1883, para alterar umas escadas que serviam simultaneamente a sua propriedade e a da vizinha. Ora esta vizinha era a sua sogra, Margarida Ferreira de Almeida. Numa passagem em que evoca a sua casa, Raul Brandão escreve nas Memórias: “Aqui ao lado morou minha avó; no armário, metido na parede como um beliche, dormia em pequeno meu avô, que desapareceu um dia no mar com toda a tripulação do seu brigue”.

Nessa casa que Germano Brandão adquiriu em 1873, terá o escritor vivido pelo menos a partir dessa data, mas não é de excluir que já ali morasse com os seus pais antes disso. E já depois de se casar, viveu também aqui com a sua mulher no período que medeia entre 1899, quando a sua carreira militar o colocou no Porto, e 1901, quando pediu transferência para Lisboa. A própria Maria Angelina, no seu já citado volume de memórias, evoca o quintal da casa, com o seu pano de muralha, o “pomarzinho florido” ou a tal bica de água a que também Brandão alude em vários textos. Como veremos adiante, de tudo isto restam vestígios.

Em 1909, Raul Brandão e a mulher tornaram-se mesmo proprietários desta casa da Cantareira, arrematando uma hipoteca feito por Germano Brandão, que morreria pouco depois, “amachucado, exausto e pobre”, segundo o testemunho do próprio filho. O escritor reformou-se dois anos depois, em 1911, e radicou-se definitivamente na Casa do Alto, na Nespereira, mas em 1918 ainda data da Cantareira o primeiro tomo das suas Memórias, lembra Joaquim Pinto da Silva, que no seu livro reproduz ainda alguma da variada correspondência endereçada a Raul Brandão para a morada “Cantareira, 61”, designadamente o envelope de uma carta enviada em 1914 por Teixeira de Pascoaes. 

Dada a fortíssima ligação de Brandão à sua casa da Foz, testemunhada em muitas das páginas que nos deixou, o investigador imagina que deve ter sido com “profundo pesar” que, na véspera de Natal de 1920, consoante documento que também reproduz no livro, o casal vendeu a propriedade a um certo Tomás de Sousa e Silva, antepassado dos actuais proprietários.

Quando teve a certeza de que identificara a casa, Joaquim Pinto da Silva decidiu-se finalmente a tocar à porta do n.º 254 da Rua do Passeio Alegre. Ia dar a boa nova aos actuais moradores, mas acabou por ser ele o surpreendido. Atendeu-o o filho da proprietária, também ele Tomás, como o seu antepassado, a quem atirou: “O senhor sabe que vive numa casa que é importante?”. A resposta, conta, veio rápida e sem hesitação: “Sei! Foi a casa de Raul Brandão! Naquelas escadas [apontando para o interior] escreveu Os Pescadores”. E o autor conclui: “Andamos aqui nós a engolir pó nos arquivos, a chafurdar em cartapácios, a deduzir laços familiares, a decifrar testamentos, heranças e planos de obras, e a resposta estava in situ, à distância de um toque de campainha”. Mas sempre pôde assim visitar a casa e testemunhar que, apesar das muitas alterações sofridas, continua a ser possível reconhecer ali muitos dos elementos que Brandão descreve, incluindo a bica, que continua a correr, e um velho limoeiro que ainda terá sido plantado pelo escritor.

Mas esta informação que os actuais moradores conheciam por história familiar foi sendo esquecida por motivos hoje difíceis de reconstituir. Frisando que está a especular, Joaquim Pinto da Silva sugere que talvez a casa da Cantareira se encontrasse bastante degradada quando foi descerrada a placa na da Bela Vista e, nos anos 40, em pleno Estado Novo, tenha parecido mais confortável assumir que esta última, porventura mais rica, fora a única casa de Raul Brandão na Foz.

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