Varanasi, a Índia mais sagrada de todas as Índias

O leitor Rui Bizarro conta-nos a sua experiência na cidade onde a morte está presente dia e noite.

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Rui Bizarro

Não sendo propriamente a cidade mais turística, Varanasi é considerada pelos hindus uma das cidades mais sagradas da Índia.

O ponto mais importante de qualquer peregrino que chega a Varanasi é banhar-se no rio Ganges, nas suas águas sagradas. É muito comum as pessoas levarem água para casa em grandes garrafões. Acreditam os hindus que tomar banho nestas águas os limpa de todas as impurezas. Aqui vemos as pessoas a beberem água, a lavarem roupa, a atirarem os corpos mortos para as águas, enquanto vários barcos a motor circulam por entre imenso lixo.

A primeira coisa que fiz depois de pousar as malas no hotel foi dirigir-me ao Ganges para molhar os pés e as mãos e purificar-me com estas águas — sujas, mas ao mesmo tempo puras e sagradas. Sentei-me junto ao rio, meditei um pouco e ali permaneci. Era de noite já, com um imenso nevoeiro, o que parecia tornar este local ainda mais mágico. Que enorme paz e silêncio! Depois fui até à Burning Gate (Marnikarnika Ghat). Diz-se que quem morrer em Varanasi, santo ou pecador, verá todos os seus pecados serem perdoados. Há lugares onde vivem vários idosos, oriundos de toda a Índia, à espera da sua hora para partirem desde este lugar sagrado.

Neste lugar de cremação há sempre muita gente, viva e morta, à espera de vez para ser cremada. Aqui as cremações são feitas continuamente, e são feitas cerca de 150 por dia. Os corpos são trazidos numas camas de bambu, envolvidas nuns tecidos lindos coloridos, e são pousados junto aos crematórios. Ao longe, ouvem-se cânticos: “Ram Ram Satahe; Ram Ram Satahe...”

Quando chega a vez de o corpo ser cremado, este vai ao Ganges ser limpo e abençoado. Espera-se uma meia hora para secar e depois é colocado em cima de uma pilha de madeira, onde são retirados os tecidos, ficando apenas um lençol. É colocada mais lenha por cima e o corpo é também pulverizado com muito sândalo em pó, orgulhosamente apelidado pelos indianos de “holly wood”, para que seja purificado. Assim que o corpo está preparado, ateiam-lhe fogo — a chama em Varanasi está constantemente acesa. De seguida, são dadas cinco voltas ao corpo, que representam os cinco elementos: Terra, Água, Ar, Éter e Fogo. A carbonização do corpo dura aproximadamente três horas. Ao fim de duas horas, batem com um pau na cabeça do defunto para que a sua alma possa finalmente sair do corpo e viajar.

Todas as pessoas devem ser cremadas para que possam ser ajudadas no moksha, ou seja, para que a sua alma possa partir livremente e possam libertar-se do samsara, do mundo material e dos ciclos de morte e renascimento.

Existem, no entanto, cinco tipos de pessoas que, ao morrerem, não necessitam de serem cremadas, pois a sua alma tem já o moksha garantido. É o caso dos saddhus (homens santos), de mulheres grávidas, de crianças, de pessoas mordidas por serpentes e, por último, pessoas com algum tipo de deficiência. Nestes casos, os corpos são colocados directamente no Ganges para que os peixes se encarreguem de os comer e a decomposição decorra naturalmente.

Ao passearmos nas margens do rio, perdemos a noção do tempo e do espaço, como se ali tivéssemos alcançado tudo. Sinto-me a transbordar de amor com tanta beleza aqui no Ganges. Com esta atmosfera de paz e leveza, sinto-me a pairar e a sorrir para todos os seres. Uma felicidade invade-me e eu abraço-a plena de amor. As pessoas passeiam, felizes, e sorriem despreocupadas para o mundo. Parecem todas crianças com a sua bela espontaneidade, com seus corações puros. A deusa Ganga abençoa-nos a todos.

Ao partilhar o que sinto, adorava que este momento se eternizasse, para não mais perder esta sensação tão difícil de expressar. O meu coração sorri, fresco, inocente. Como se toda a vida convergisse para este exacto momento. É próximo da sensação de realização interior, como se não precisasse de nada mais. Uma sensação extraordinária! Como se abarcasse o todo dentro de mim.

Observo o rio e as suas margens cheias de pessoas e parece um quadro pintado por Deus, de tal forma vivo e perfeito. Parece que sinto os anjos e os seres alados a cantarem aos meus ouvidos através dos pássaros que voam livres à minha volta.

Assim é o Ganges, assim é Varanasi, assim é a Índia, assim é a vida!

Rui Bizarro

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