Assim se come em Bragança

O município pediu ao investigador Armando Fernandes que elaborasse uma Carta Gastronómica da região e o resultado é um livro que reúne o que é possível saber-se sobre os costumes gastronómicos de Bragança desde o período medieval até hoje.

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Até que ponto um prato que associamos a uma região é realmente “tradicional”? Ou uma suposta tradição é de facto antiga? Ou um produto pode ser considerado regional? Uma carta gastronómica pode fixar um património histórico, material e imaterial, e ajudar a clarificar muitas destas questões.

O município de Bragança pediu ao investigador em história da gastronomia Armando Fernandes que elaborasse uma Carta Gastronómica da região e o resultado é um livro que reúne o que é possível saber-se sobre os costumes gastronómicos de Bragança desde o período medieval até hoje. São 128 fotografias de objectos de uso quotidiano ligados à cozinha e à alimentação, 77 entrevistas com habitantes e perto de 200 receitas.

Esta é uma história que começa nos tempos medievais, com a população a viver “do que a terra dava”, sendo o mais trazido pelos almocreves, “essenciais para o regular abastecimento de tudo quanto escasseava, caso do azeite, do pescado e do sal”. Armando Fernandes procura informação sobre os produtos comercializados nas “cartas de feira”, que nos dão uma ideia do que constituía a base da alimentação.

São diversas as fontes que o investigador consulta em busca de diferentes tipos de informações que, cruzadas, permitem fazer o retrato do que se comia, seja nas casas ricas, seja entre os pobres. O acervo documental da Santa Casa da Misericórdia de Bragança revela “os gastos com as refeições destinadas a doentes, presos, pobres, e pobres de pedir”, que se baseavam em “quartilhos de azeite, grão-de-bico e moletes de pão cozido”.

Outra fonte são as Memórias Paroquiais (do século XVIII), onde se percebe o que são os produtos locais numa altura em que os ingredientes vindos do Novo Mundo, através dos Descobrimentos, começam a entrar nos hábitos alimentares da população. As pautas alfandegárias mostram, por outro lado, que as sardinhas eram trazidas do litoral e da Galiza pelos já referidos almocreves (só no final de 1906 é inaugurada a ligação ferroviária entre Mirandela e Bragança).

Do Anuário Comercial de 1904, por exemplo, retira-se a informação da existência de grande quantidade de caça na serra de Montesinho. E, já no período da implantação da República, os documentos da Quinta da Rica-Fé ajudam a traçar o retrato da alimentação numa família “de grossos cabedais mas muito terra-a-terra nos seus hábitos alimentares”.

Depois de um Álbum de Objectos e Artefactos, a Carta leva-nos até aos dias de hoje para ouvirmos, pela voz de habitantes locais a história de hábitos, práticas e tradições, dando a imagem de uma vida difícil, de privações: “Na festa cozia-se uma galinha velha para se fazer sopa. Aos doentes serviam-se aguinhas só com um bocadinho da carne da galinha, senão fazia-lhes mal.”

Foi, contudo, desta vida de dificuldades que nasceram muitas receitas recolhidas junto da população mais velha (simples, como as torradas de pingo ou unto, ou mais radicais, como a lontra do Fervensa, que começa assim: “Morta a lontra, esfola-se, amanha-se e retiram-se as tripas”). O livro termina com um glossário, onde descobrimos, por exemplo, que seminata é o mesmo que sarrabulho e que saranda é o mesmo que vadio.

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