Há petróleo no Beato

Os dados e a informação são agora a mais importante fonte de riqueza das nações e das organizações.

Nesta peça, de 1986, protagonizada pelo saudoso Raul Solnado, uma modesta família portuguesa, que mora no Beato, descobre petróleo no quintal ao arrancar uma alface. O potencial rendimento desta inusitada fonte de riqueza muda profundamente o dia-a-dia desta família, que vê a vida virada de pernas para o ar pela inesperada descoberta. Não se descobriu, até agora, petróleo no Beato, claro, mas num certo sentido, o título da peça pode ser visto como uma premonição.

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Nesta peça, de 1986, protagonizada pelo saudoso Raul Solnado, uma modesta família portuguesa, que mora no Beato, descobre petróleo no quintal ao arrancar uma alface. O potencial rendimento desta inusitada fonte de riqueza muda profundamente o dia-a-dia desta família, que vê a vida virada de pernas para o ar pela inesperada descoberta. Não se descobriu, até agora, petróleo no Beato, claro, mas num certo sentido, o título da peça pode ser visto como uma premonição.

Os dados e a informação são agora, de facto, a mais importante fonte de riqueza das nações e das organizações, superando mesmo os recursos naturais, geológicos. A revista The Economist dedicou recentemente um número ao tema de os dados serem, no futuro, um recurso ainda mais valioso que o petróleo. Embora os recursos geológicos continuem a ser fundamentais para a produção de riqueza, e devam ser explorados e geridos de melhor forma possível, é cada vez mais importante saber gerir e explorar os dados e a informação, um outro importante recurso natural das nações. As cinco empresas mais valiosas do mundo no fim de 2017, Apple, Alphabet (Google), Microsoft, Amazon e Facebook, todas elas com uma capitalização bolsista superior a 500 mil milhões de dólares, devem o seu valor quase unicamente ao facto de gerirem e explorarem grandes volumes de dados.

A maioria das organizações não valoriza ainda o suficiente este importante recurso. Embora muitas empresas já tenham projectos para explorar e retirar valor dos dados que são obtidos no exercício da sua actividade, este posicionamento é muito menos frequente na administração do Estado e nos serviços públicos. A Fundação para a Ciência e a Tecnologia abriu recentemente um concurso para projectos na área da ciência de dados e da inteligência artificial, dirigido à administração pública em colaboração com as universidades, enquadrado na Iniciativa Nacional Competências Digitais, INCoDe.2030. Este concurso é bem-vindo, uma vez que contribuirá seguramente para a modernização do Estado e dos serviços públicos. Porém, trata-se de uma iniciativa limitada e de reduzida dimensão, que deverá representar apenas o início de um processo longo e mais profundo.

É fundamental que todos os intervenientes compreendam o valor acrescentado que poderá resultar do uso adequado da informação armazenada nos numerosos sistemas de informação da administração pública. Esta informação, se devidamente disponibilizada e trabalhada, poderá contribuir para a redução de custos, para o aumento de eficiência, para a melhoria dos serviços e, de uma forma geral, para a dinamização da economia. A exploração dos dados existentes pode ser feita de muitas formas, algumas das quais mais profundas e transformadoras que outras. A disponibilização de dados estatísticos na Internet, como é feito, por exemplo, pelo Instituto Nacional de Estatística ou pelo Banco de Portugal, permite aos especialistas obter informação específica, mas é de difícil acesso ou reutilização pelo público. Outras formas de disponibilizar informação, também disponíveis na Internet, como o Pordata ou o Observatório da Energia, recentemente lançado, são mais acessíveis aos cidadãos interessados e permitem uma exploração mais interactiva e eficaz de séries importantes, mas ainda não permitem realizar todo o valor escondido nos dados. O verdadeiro valor de muitos dados públicos só será completamente realizado quando estes forem disponibilizados através de interfaces de programação de aplicações (API, em inglês), que permitem a programadores aceder aos referidos dados, através de programas e aplicações informáticas. A disponibilização dos dados através destas interfaces permite criar novas aplicações, que utilizem os dados publicamente disponíveis, para novas utilizações, a maioria delas nunca imaginadas pelas pessoas ou instituições que coligiram os dados.

Um caso de estudo excepcionalmente interessante é a iniciativa de dados abertos do estado norte-americano de Nova Iorque. Seguindo o exemplo de outros estados, foi definida uma política de dados abertos, que, uma vez implementada, levou à criação de um ecossistema de empresas e instituições que exploram e tiram valor destes dados. Muitos dos dados disponibilizados pelo estado e pelas instituições são acessíveis através de interfaces de programação de aplicações, permitindo a pessoas, empresas e universidades criar soluções úteis para o cidadão comum, que muito contribuem para a informação do público e para a melhoria do sistema. Um destes conjuntos de dados, que disponibiliza mais de 17 milhões de tratamentos médicos (devidamente anonimizados), permite a qualquer cidadão descarregar e usar uma aplicação que lhe permite determinar qual o hospital que tem mais sucesso e eficiência no tratamento de uma dada patologia (por exemplo, leucemia, hepatite ou hérnia abdominal, entre centenas de outras) e assim tomar decisões esclarecidas e informadas. Este vasto conjunto de soluções não foi desenvolvido centralmente, pelo estado, mas sim por uma grande comunidade de pessoas, empresas e instituições, que assim criam valor económico a partir dos dados. A gama de aplicações é quase infinita, apenas limitada pela imaginação do colectivo. Muitas dessas soluções são generalizáveis para outras realidades, permitindo às empresas crescer e exportar para outros estados e países.

Portugal deveria criar as condições para a criação deste tipo de ecossistema, desenvolvendo eficazmente uma política de dados abertos, e não se deixando enredar excessivamente pelas preocupações pela privacidade dos dados que, sendo importantes, não deverão constituir-se como um travão à inovação. Embora oficialmente exista um conjunto de recomendações para os dados abertos, uma iniciativa da Agência para a Modernização Administrativa, estas recomendações tiveram até agora nulo ou reduzido impacto, e são desconhecidas pela maior parte dos agentes. Se o país se quer posicionar na linha da frente dos desenvolvimentos em tecnologias de informação e comunicação, importa criar condições para que a política de dados abertos seja uma prioridade nacional, suportando assim o empreendedorismo e a inovação. As universidades têm também um importante papel a desempenhar, desenvolvendo nos seus alunos as competências necessárias para a análise de dados, não só através de cursos específicos (como é o caso do novo curso de Engenharia e Ciência de Dados do IST) mas também através do desenvolvimento deste tipo de competências nas formações das mais diversas áreas. A competitividade futura do país depende criticamente da nossa capacidade para efectuar estas alterações.

O desenvolvimento do Hub Criativo do Beato, um espaço destinado à inovação tecnológica e às indústrias criativas, permitirá, seguramente, que venham a ser desenvolvidas muitas aplicações que, com base em dados existentes, criem novos serviços, soluções e empresas. Muitas destas empresas irão explorar os dados, o petróleo do século XXI, criando empregos, produtos e valor económico para o país. Ou seja, vai mesmo haver petróleo no Beato!