Os pupilos do senhor reitor Salvato Trigo

Há um mês, andei à procura das excepções que permitem fazer julgamentos à porta fechada. A lei diz que têm de ser apresentados “factos concretos” e os especialistas sublinham que devem ser "excepcionalíssimos”. No caso do reitor Salvato Trigo, não são nem uma coisa nem outra.

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O PÚBLICO fez 28 anos e, no preciso dia do nosso aniversário, o juiz José Guilhermino Freitas, da Instância Local Criminal do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, teve a simpatia de me enviar uma carta. Chegou por e-mail e lê-se como um Graham Greene embora, infelizmente, não no sentido literário, mas apenas no do suspense.

O que no 5.º parágrafo parece uma coisa, é outra no 6.º, no 7.º regressa ao 5.º e no 8.º aponta para uma direcção cuja linha é neutralizada no 9.º e por aí fora, numa espiral retorcida que — admita-se — exige inteligência e criatividade.

Posso atestar que resulta. Vamos lendo e o coração acelera com o prolongar da expectativa. O fim é o que um amigo antecipou num sábio sms que me enviou há um mês.

Em Outubro, o juiz José Guilhermino Freitas concordou em fechar a porta do julgamento do reitor Salvato Trigo e, desde a vitória de Donald Trump, nenhuma outra notícia me provocou maior espanto.

Um julgamento secreto a título de quê? Não me lembro em democracia de nenhum outro julgamento de "colarinho branco" feito às escondidas. Salvato Trigo é reitor da Universidade Fernando Pessoa, no Porto, e é acusado de ter desviado três milhões de euros dos cofres da escola para benefício próprio. A lei prevê excepções para a regra que define que todos os julgamentos têm de ser feitos de portas abertas: crimes sexuais, tráfico de pessoas, segredos de Estado, segurança do país ou do mundo, venda de armas, factos de crueldade e crueza extremas, para além de casos que envolvam menores. Como nenhum parece aplicar-se ao reitor do Porto, em Fevereiro pedi ao tribunal uma cópia do requerimento que Salvato Trigo entregou em defesa de um julgamento secreto e o despacho do juiz José Guilhermino Freitas a dar luz verde.

A resposta veio a 5 de Março. No juridiquês em que nós, cidadãos, passamos a “requerentes”, os queixosos a “assistentes” e os réus e o Ministério Público a “sujeitos processuais”, o juiz informa que, pedida a opinião às partes envolvidas, os procuradores do Estado não se opuseram, mas que o arguido (o reitor da Universidade Fernando Pessoa) e o assistente (a própria universidade) “pugnaram ambos pelo indeferimento do requerido”. Tradução: defenderam que não me devia ser dado a ler a argumentação usada para fazer o julgamento secreto.

Posto isto, o tribunal informa que “enquanto redactora/jornalista no exercício da liberdade de imprensa” tenho “legitimidade e interesse legítimo” para fazer o pedido. A seguir, lembra que o julgamento está a decorrer à porta fechada, pelo que “não é legalmente possível a narração de actos processuais” até à sentença. Depois, que, feita a “ponderação do conflito de direitos em causa” — direito a informar versus protecção do bom nome do réu —, o tribunal “crê que a exclusão de publicidade não justifica a recusa das simples cópias solicitadas”.

“Vai correr bem”, pensei.

O 9.º parágrafo confirma a sensação. “Deverá ser admitida a pedida cópia dos autos.” E o 10.º reafirma: “Vai deferido o pedido de cópias do processo.”

É então que chegamos à última frase: “A aludida cópia dos autos só poderá ser entregue após o trânsito em julgado do presente despacho, e sempre depois de efectuado o seu pagamento.” Tradução: tenho agora de esperar 30 dias para saber se Salvato Trigo vai recorrer desta decisão. Se recorrer, esperarei uns meses para conhecer a decisão do Tribunal da Relação.

Mas não se preocupe o leitor. A jornalista que noticiou este caso pela primeira vez estava a fazer diligências parecidas e foi mais expedita. Depois de várias démarches, conseguiu a gravação da audiência. Vale a pena ler a argumentação que Salvato Trigo usou e que o juiz José Guilhermino Freitas “comprou”. Resumido, é isto: o reitor está a ser julgado na clandestinidade porque “é uma personalidade de reconhecido mérito e prestígio”, as acusações são “atentatórias da sua honorabilidade profissional e pessoal”, o julgamento teria “repercussão mediática”, isso teria “um efeito nefasto no normal funcionamento da Universidade Fernando Pessoa”, causaria “danos irreparáveis na imagem e no bom nome” da escola e de “todos os seus alunos e profissionais”. Foi este conjunto de danos “graves e especiais” que o juiz do Porto considerou serem “circunstâncias excepcionais” que justificam abrir uma excepção à lei portuguesa e, já agora, que o próprio Ministério Público na altura não contestou. Tradução: o Portugal bem comportado não quis incomodar o senhor reitor.

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