Da pátria tão bela e perdida

Se o governo italiano for construído pelo Movimento 5 Estrelas com um apoio tácito de uma parte da esquerda pode ser que daqui a uns tempos se escrevam sobre a Itália os artigos a que agora nos habituámos sobre a geringonça portuguesa.

Florença, Itália. — O Nabucco de Verdi estreou há 176 anos, na noite de 9 de março do ano de 1842, no Teatro alla Scala de Milão. Reza a lenda que quando ouviram então os versos do seu coro mais conhecido — o Va Pensiero, em que os judeus cantam as suas saudades da pátria no período do exílio babilónico —, os italianos puderam imediatamente tomar essas palavras como expressão do seu próprio anseio de unidade em época de dominação austríaca. Reza a lenda, digo eu, porque é bem possível que apenas retrospectivamente se tenha inventado esta explicação.

O que é certo é que menos de vinte anos depois a Itália era declarada oficialmente unificada pela mesma geração que ouvira o Nabucco. Desde então se falou muito de fazer do Va, Pensiero o hino do país — apenas mais uma das tantas coisas que os políticos italianos foram deixando para mais tarde, e que acabaram por não decidir.

Ora, uma das razões para que o Va, Pensiero não tenha sido escolhido como hino de Itália é que o seu poema parece derrotista. É nos seus versos que se fala de uma “minha pátria, tão bela e perdida” cujo único pecado é definir demasiado bem a Itália nos dias em que os italianos se sentem melancólicos.

Quase dois séculos depois, pouco se falou por aqui do aniversário do Va, Pensiero. Mas os italianos estão ocupados a discutir algo que os contemporâneos de Verdi imaginariam que viesse rapidamente a ser assunto encerrado, a saber: como é possível que das eleições de passado domingo tenha resultado um país partido ao meio?

Quem olhou para o mapa eleitoral de Itália viu uma mancha tricolor. Ao Norte, a cor azul da aliança de direita que esconde na verdade o verde escuro da Liga, partido que já foi separatista e então se chamava a “Liga Norte para a Independência da Padânia” (hino oficial: para suprema ironia e insulto, o Va, Pensiero de Verdi). Ao Sul, a paisagem eleitoral é dominada pelo amarelo do Movimento 5 Estrelas, que foi o partido mais votado do país.

É esta divisão geográfica e ideológica que levou os observadores externos a declarar o país partilhado entre dois populismos — o da Liga e o das 5 Estrelas — e a tomá-los por equivalentes. Daqui partiram as leituras apressadas que identificaram o anti-europeísmo e a xenofobia da Liga como se fosse transferível para as 5 Estrelas. O populismo é dominante em Itália, é verdade. Mas não seria verdade já antes? Não era Berlusconi populista? Não o era Renzi também, quando foi para um referendo proclamando que ou era ele ou era o caos? A questão que os observadores externos não se colocam mas que vai ocupar a mente dos italianos daqui para a frente é se todos estes populismos são iguais, ou seja, se isto significa que todos os gatos são pardos da mesma maneira.

E é aí que o voto no Sul vem dar algumas pistas para o futuro. O voto no Movimento 5 Estrelas é, sim, o voto de uma parte do país que se sente abandonada. Mas é, mais decisivamente ainda, um voto que vem da esquerda, e muitas vezes em políticos que vêm da esquerda.

É também o voto de uma região que tem um entendimento muito diferente do que deve ser a solidariedade na Itália e na Europa (críticos da Europa mais por falta dela do que por excesso dela, por muito que isso desagrade aos comentadores eurofóbicos). É verdade que, no tempo de Beppe Grillo, o Movimento 5 Estrelas se aliou no Parlamento Europeu ao grupo eurocético de Nigel Farage; mas também é verdade que muitos dos seus deputados queriam fazer parte dos Verdes europeus, e que o próprio Grillo tentou depois mudar para o grupo Liberal assumidamente eurofederalista. Os comentadores tentam recriar um ambiente de conflito na zona euro após as eleições italianas. Mas o anunciado ministro das finanças do movimento — que só pronunciou uma frase em inglês na noite eleitoral, para dizer que a Itália não sairia do euro - é um keynesiano heterodoxo que, se lá chegar, virá a ser no eurogrupo um bom aliado de Mário Centeno.

Na sua cegueira, parece que a presidência da Comissão Europeia preferia que Berlusconi tivesse ganho as eleições em Itália - isto quando o fim político de Berlusconi foi das poucas boas notícias que a Itália e a Europa tiveram no domingo. Mas se forem menos cegas, e menos surdas, pode ser que as instituições europeias ainda venham a encontrar razões para entender que o voto italiano tem aspectos mais construtivos do que aquilo que até agora se pensava. Muita água vai correr debaixo das pontes, mas se o governo italiano for construído pelo Movimento 5 Estrelas com um apoio tácito de uma parte da esquerda pode ser que daqui a uns tempos se escrevam sobre a Itália os artigos a que agora nos habituámos sobre a geringonça portuguesa. Vai uma aposta?

Regressemos a Verdi. O patriotismo italiano do seu tempo já era um patriotismo inclusivo e europeísta. Não é por acaso que um dos seus maiores cultores, o político Giuseppe Mazzini, inseriu o seu movimento de unificação italiana numa das primeiras associações políticas internacionais, a que chamou “Jovem Europa”. Esta tinha por objetivo a libertação de todos os europeus que viviam sob regimes absolutistas, ou seja, fazer da Europa (como da Itália) uma pátria menos “bela e perdida”. Eis um espírito no qual faríamos bem em procurar hoje alguma inspiração.

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