A Itália mostra os limites da integração europeia

Quando metade do eleitorado vota em partidos que contestam abertamente as políticas da União, os limites da vontade de integração europeia tornam-se bem visíveis.

1. Talvez nenhum Estado da União Europeia mostre de forma tão clara os limites do processo de integração como a Itália. Sendo um Estado fundador das Comunidades, tem diversas gerações envolvidas na integração europeia desde os anos 1950. Todavia, dois problemas complexos evidenciam os limites de uma integração bem-sucedida. O primeiro, que é também o mais antigo, é o do persistente atraso de toda a região a Sul de Roma e da Sicília (o Mezzogiorno). O problema tem particular interesse porque mostra o persistente falhanço da política regional e da política de coesão económica, social e territorial europeia, no desenvolvimento do Mezzogiorno. Note-se que já decorreram mais de seis décadas de integração, pelo que o caso não pode ser explicado como nos países do Centro e Leste europeu, por um tempo relativamente curto de integração. Para além deste insucesso, um outro emergiu a partir dos anos 1990, com a adesão da Itália à União Económica e Monetária e ao Euro. A economia italiana — tal como a generalidade das economias do Sul da Europa —, tem evidenciado dificuldades em adaptar-se ao Euro. Parte importante da população italiana vê na perda da soberania monetária uma causa maior dos seus problemas económicos e de bem-estar. Para além de um fraco crescimento, o país acumula uma das dívidas públicas mais elevadas da Zona Euro e de toda a União Europeia.

2. Olhando melhor para Itália observa-se a existência um duplo problema de integração: um nacional e outro europeu. O mais antigo, que persiste sob várias formas, é uma sequela da unificação política do século XIX — o Risorgimento. Mostra as dificuldades de criar uma economia, sociedade e política nacional, unificada e integrada de modo coerente e solidário. A Itália, tal como, num outro plano, a Grécia, é simultaneamente muito antiga e uma criação política bastante recente. Roma e o Império Romano na Antiguidade estão muito distantes historicamente, não existindo continuidade directa. No longo período medieval até ao século XIX, a Itália esteve fragmentada em diversas unidades políticas autónomas, tendencialmente soberanas. A República de Veneza, Florença / Grão-Ducado da Toscânia, os Estados Papais / Roma e o Reino de Nápoles / Reino das Duas Sicílias mostram essa realidade. Num certo sentido o Risorgimento foi mais um processo de anexação, feito pelos Estados do Norte, em particular pelo Piemonte (Turim foi a primeira capital da Itália unificada), do que uma genuína e paritária unificação. O Sul da Península Itálica, o Reino de Nápoles / Reino das Duas Sicílias, acabou por ser o maior perdedor. Não é muito surpreendente se tivermos em conta que, noutro Estado nuclear da Europa — a Alemanha —, a unificação de 1871 seguiu, em traços gerais, um padrão bastante similar. A Prússia unificou, voluntariamente ou à força, os Estados soberanos que anteriormente existiam no espaço germânico.

3. O mapa eleitoral que resultou das eleições legislativas de 4 de Março de 2018 espelha as várias Itálias que persistem, política e economicamente. A Itália que votou nos partidos da coligação de direita onde a Liga (anteriormente Liga do Norte), de Matteo Salvini, emergiu como partido dominante dessa coligação, superando a Força Itália de Sílvio Berlusconi. O seu cerne eleitoral encontra-se nas regiões ricas do Norte. É daí que vem, também, o seu líder: Matteo Salvini é de Milão, na Lombardia. A Sul, no Mezzogiorno, está fundamentalmente a Itália que votou no Movimento 5 Estrelas (M5S). O seu actual líder, Luigi Di Maio é de Avellino na Campânia. Por sua vez, no Centro da Península Itália, especialmente na Toscânia, o Partido Democrático de Matteo Renzi — o tradicional centro-esquerda europeísta —, apesar do mau resultado a nível nacional, ainda mantém uma presença eleitoral significativa, bem como em partes do Nordeste, no Trentino Alto Adige. Sintomaticamente, Matteo Renzi é de Florença, na Toscânia. Aspecto relevante, nestas eleições os problemas económicos e de bem-estar misturam-se com a questão dos refugiados e migrantes económicos que afluem ao território da União Europeia. Pela sua localização geográfica no Mediterrâneo e proximidade de África, a Itália, tal como a Grécia, tem estado sujeita a sucessivas vagas migratórias. Nos últimos anos, o assunto tornou-se central na política italiana facilitando a ascensão dos partidos populistas e/ou anti-sistema.

4. Em meados de 2017, após a eleição do europeísta Emmanuel Macron em França, com uma vitória esmagadora sobre Marine Le Pen, muitos anteciparam o progressivo fim do populismo e dos partidos anti-sistema. Ao longo de 2017, a percepção foi acentuada pelas divisões políticas no Reino Unido devido ao receio de um impacto negativo da saída da União Europeia e às incertezas quanto à relação futura, que fez flutuar, em sentido contrário, a opinião pública. Mas essa é uma leitura demasiado simplista da realidade. O que tem estado a ocorrer não é, provavelmente, uma mera vaga populista. Se fosse assim, estaríamos perante um fenómeno conjuntural. E uma vez dissipada a vaga populista voltaríamos à rotatividade normal do centro-direita e do centro-esquerda, ambos pró-europeístas. Mais plausível é estarmos a assistir antes a uma alteração política e ideológica profunda, de tipo estrutural, onde há períodos de maior e de menor intensidade nesta. A eleição italiana mostra essa tendência de transformação nas suas várias dimensões. Uma primeira é a perda de atracção, em graus varáveis, da União Europeia. A segunda é a quebra, com algumas excepções, da expressão eleitoral dos partidos de centro-esquerda de matriz ideológica socialista / social-democrata. A terceira é os partidos de perfil populista ou anti-sistema estarem a tornar-se uma componente incontornável da luta político-ideológica, devido à sua crescente representação parlamentar e/ou institucional, a qual torna impossível ignorá-los no exercício do poder.

5. As consequências das tendências anteriormente descritas são múltiplas e importantes. O novo governo em Itália, se reflectir nas suas políticas a vontade expressa pelo eleitorado, como deverá ser em democracia, tenderá a engrossar o eixo contestatário na União Europeia, já bastante enraizado no Centro e Leste europeu, Áustria incluída. Quanto ao enfraquecimento geral da esquerda socialista / social-democrata, de que a expressão maior foi o mau resultado do Partido Democrático de Matteo Renzi, traz um outro problema ligado, bastante delicado para a União. Até agora, o exercício do poder nas principais instituições europeias (Conselho, Comissão, Parlamento, Eurogrupo, etc.) tem sido fundamentalmente repartido e controlado pelo centro-direita e pelo centro-esquerda do establishment pró-europeísta. Mas esse modelo pode estar a aproximar-se do fim, se ruir a co-hegemonia do Partido Popular Europeu e da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas. Pelas razões apontadas, a deste último grupo político é a que está mais seriamente ameaçada. Importa lembrar que estas eleições legislativas em Itália deram uma vitória ao Movimento 5 Estrelas (M5S), com 32,7% dos votos, um partido anti-sistema de perfil populista — só superado pela votação na coligação dos partidos da direita. Mas se lhe juntarmos os votos da Liga (antigamente designada por Liga do Norte, a qual que se tornou o maior partido da coligação de direita), que teve 17,4% dos sufrágios, verificamos que 50% do eleitorado italiano votou em partidos “problemáticos” para União Europeia. Podemos imaginar o impacto político de uma votação similar nas eleições de 2019 para o próximo Parlamento Europeu, sobretudo se for replicada noutros grandes Estados.

6. Quando metade do eleitorado vota em partidos que contestam abertamente as políticas da União, os limites da vontade de integração europeia tornam-se bem visíveis. Para além da complexidade da situação política italiana actual, persistem os dois problemas profundos de integração já referidos: uma integração nacional que mostra sequelas entre o Norte e o Sul, herdadas do Risorgimento; e uma integração europeia, da qual a economia no seu conjunto se ressente, especialmente após a introdução do Euro nos anos 1990, configurado fundamentalmente pela Alemanha e as economias do Norte da Europa. Em Itália, o M5S faz lembrar, em parte, a ascensão Partido da Independência do Reino Unido que impulsionou o Brexit. Ambos integram, no Parlamento Europeu, o grupo Europa da Liberdade e da Democracia Directa. Até certo ponto, os factores catalisadores da ascensão político-eleitoral são similares, nomeadamente na contestação das políticas europeias e na atitude anti-establishment. Todavia, um olhar mais atento mostra importantes facetas diferenciadoras. No caso do M5S, a atitude anti-establishment está mais ligada à percepção da corrupção da sua classe política. Ao mesmo tempo, o sentimento soberanista em Itália não é suportado pelo passado de potência mundial até meados do século XX, como no caso britânico. Se fosse assim, provavelmente estaria em marcha um novo referendo para saída da União ou da Zona Euro. Mas há uma ilação a reter. Numa União Europeia tão diversa cultural e politicamente mais integração sem consolidação do processo arrisca-se a agravar os problemas nacionais e europeus, não a solucioná-los.

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