Nos trilhos e memórias da neve

Com maior ou menor familiaridade com invernos e temperaturas extremas, a neve povoa o nosso imaginário pelas piores ou melhores razões.

Os cenários de neve podem, como sabemos, invocar as situações mais contrastantes: desde as tragédias da guerra aos climas agrestes de catástrofes naturais, passando pelas aventuras nos picos gelados ou nas explorações polares, até aos ambientes românticos retratados pela literatura e o cinema. 

Durante o cerco a São Petersburgo (1941 a 1944), um alto funcionário da fábrica Kirov, referindo-se ao sofrimento da população sitiada, no inverno de 42 — “nunca vi alguém rindo”, refere —, descreve-nos as suas caminhadas diárias sobre a neve nas ruas da cidade onde era frequente observar o desfalecimento e a morte de transeuntes, pelo frio e sobretudo pela fome: "Vi homens tombarem sobre a neve. Nada havia que se pudesse fazer. E continuávamos andando... Depois, mais tarde, quando voltava, distinguia uma tosca forma humana, coberta de neve, naquele lugar onde de manhã havia visto tombar o homem" (in The Siege of Leningrad, 1941-1944. EyeWitness to History, 2006). Os dramas da guerra verdadeira transcendem tudo, quer na II Guerra Mundial, com o pânico dos rebentamentos no fundo das trincheiras rodeadas de branco ou com a morte pela fome de populações inteiras, quer nas guerras de hoje (Síria/Ghouta). Mas sabe-se que mesmo nas situações mais trágicas as pessoas inventam rotinas e simulacros de normalidade.

Não é, no entanto, para falar de catástrofes que invoco aqui a neve, mas sim para mostrar um pouco do quotidiano de uma cidade habituada ao clima frio (e que também sofreu massacres no passado, com a ocupação nazi e não só). Com maior ou menor familiaridade com invernos e temperaturas extremas, a neve povoa o nosso imaginário pelas piores ou melhores razões. No cinema, há cenas famosas pelo seu dramatismo romântico no romance (B. Pasternak) e filme Doutor Jivago, como a carga da cavalaria cossaca sobre os manifestantes, o médico a socorrer uma vítima na rua, a corrida desesperada da mulher para o comboio ou a vista do rosto amado de Lara que caminha nas ruas geladas de Moscovo, são retratos que David Lean eternizou e onde a presença da neve é um elemento central.

Em Portugal há referências esporádicas na poesia, como é o caso da Balada da Neve, de Augusto Gil — “A neve caía do azul cinzento do céu, branca e leve, branca e fria... – Há quanto tempo a não via! [...]” —, ou num dos heterónimos de Pessoa: “A neve pôs uma toalha calada sobre tudo. Não se sente senão o que se passa dentro de casa. Embrulho-me num cobertor e não penso sequer em pensar [...]”. (Alberto Caeiro, in Poemas Inconjuntos). Fora das referências poéticas, literárias ou do cinema, a presença da neve em Portugal é muito escassa e circunscrita. Das poucas vezes que fui ao cimo da Serra da Estrela, o que ficou na memória foi a sensação de frio e vento ou mesmo chuva (mas não de neve) que nos fustigou de tal modo que tudo se resumiu a uma rápida correria entre o carro e o espaço comercial que lá se situa.

Na Ucrânia o contraste é total. Há cerca de dois anos (janeiro de 2015) publiquei aqui um texto sobre a Ucrânia (“De Kiev a Odessa na viragem do ano”, PÚBLICO, 7/01/2015) onde fiz referência ao enorme nevão que nessa altura caiu na cidade de Odessa, exatamente na noite em que viajei de comboio para lá, tendo então mergulhado pela primeira vez num cenário urbano intensamente coberto de neve. Toda aquela brancura me impressionou, desde logo porque ao contrário de qualquer imagem monótona, logo após os primeiros indícios do raiar do sol, o imenso manto de neve começou a ser polvilhado com as mais variadas tonalidades de cores. Tendo chegado à estação da cidade ainda antes do romper do dia, o manto branco que cobria praças e avenidas já atingia os joelhos de quem tentava abrir caminho, e foi isso que aconteceu nos cerca de 800 metros que percorri entre a estação e a casa de um familiar que visitámos, cavando trilhos por dentro da neve. Com todo o trânsito bloqueado, o acordar da cidade foi desenhando as mais diversas linhas cruzadas feitas de pessoas em movimento. Dir-se-ia que aos poucos se transformaram em autênticos “carreiros” cuja vista, se olhada do espaço, certamente se confunde com o trânsito das formigas na cal das paredes. Ao mesmo tempo, os volumes brancos junto às portas dos prédios mal deixavam perceber as cores da pintura dos carros aí estacionados. Mas a neve parou de cair e o dia foi de sol resplandecente. Circular nestas condições foi uma aventura, mas o efeito de novidade compensou totalmente a intensidade do vento frio. Todo o espaço estava coberto de branco e o percurso de 30 quilómetros que fizemos nesse dia foi uma autêntica epopeia, devido à escassez de transportes.

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A paisagem onde agora me encontro é semelhante, mas com outras cambiantes. É o mesmo país mas uma outra cidade, curiosamente a mesma que ainda há cerca de seis meses me fez questionar a ideia de que a Ucrânia é sinónimo de frio e neve, onde os termómetros podem atingir os 35ºC positivos, como ocorreu em agosto do ano passado (veja-se o artigo “Cherkassy +35ºC”, PÚBLICO, 24/08/2017). Ontem os termómetros desceram até -15ºC, mas o que impressiona mais não é a baixa temperatura. É antes todo o conjunto de alterações no ritmo quotidiano da cidade sob a queda de neve, que foi constante nos últimos dias. Para quem como nós, portugueses, está habituado ao clima mediterrânico — apesar das perturbações dos últimos anos — e praticamente só conhece a neve nas visitas furtivas à serra, é toda uma atmosfera que apela a cada passo à nossa curiosidade. A impressão maior é a sensação de caminhar numa outra dimensão e ao mesmo tempo a noção de que a vida não pára. Nada a ver com as visitas à serra onde o frio é em geral mais agreste. As deslocações pedestres sob este clima são favorecidas pelo terreno plano. Aqui, as caminhadas decorrem sobre sucessivos trilhos de neve que se renovam de dia para dia.

São trilhos de neve que se abrem e se transformam depois em pisos mais consistentes e aos poucos também mais escorregadios. Hoje, os montes de neve atingiram vários metros, sobretudo no centro da cidade, onde os lojistas trabalham desde manhã cedo abrindo caminho para que os clientes possam entrar. Com os flocos a continuarem a cair e a branquear gorros, casacos e cachecóis, as improvisadas veredas tornam-se mais transitáveis mas exigem ritmos acelerados, em passos rápidos acompanhados do som crrock crrock das solas das botas em contacto com a neve. Há mais silêncio nas ruas, não só porque apesar de tudo diminuiu o movimento motorizado mas também porque, deslizando na neve (na verdade uma mistura de neve-gelo), parece que os carros rodam sobre manteiga, quase sem som, volta e meia derrapando no gelo, com alguns acidentes de permeio, os peões correndo porque já sabem que mesmo rodando devagar as travagens são arriscadas no terreno escorregadio. Caminhar nos passeios ou, por exemplo, pelo meio da avenida principal (Boulevard Shevchenko), com a neve sempre a cair, a flutuar em flocos suaves sobre o rosto, requer alguma perícia e treino. Tentamos identificar os sinais de gelo no chão para evitar as usuais “esparregatas” mal definidas, com as possíveis consequências físicas.

Toda a paisagem constitui um imenso manto branco. É como se circulássemos num piso de açúcar e farinha, polvilhado de diamantes que brilham, mesmo na noite escura. A neve acumulada que rodeia as árvores nas praças e passeios convida às brincadeiras das crianças que trepam para o topo desses montículos e a seguir rebolam para baixo, colorindo ainda mais este quadro vivo, dinâmico e policromático. Uma cidade que tenta recuperar dos dramas mais recentes que atingiram o país, mas que lida com o clima extremo com grande naturalidade e que procura até fazer dele um elemento festivo na sua rotina quotidiana. Se o branco é a síntese de todas as cores, todas as cores ganham mais cor no fundo branco.

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O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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