O crime real e incompreensível que fascinou Marguerite Duras

A escritora francesa passou mais de 20 anos obcecada com um crime macabro acontecido em França. A partir dessa história escreveu várias versões de uma peça, O Teatro da Amante Inglesa, que Jorge Silva Melo agora leva à cena.

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JORGE GONÇALVES

Foi num ensaio ou numa reunião no Teatro da Politécnica. Jorge Silva Melo olhou para Isabel Muñoz Cardoso e perguntou-se ‘Mas onde é que já vi isto?’ A maneira como a actriz estava sentada acendeu-lhe, de repente, a memória de Peggy Ashcroft, no Royal Court, em Londres, em 1975 ou 1976, “exactamente na mesma posição e com a mesma maneira de estar” que testemunhava ali, à sua frente, passados mais de 40 anos. A memória era, para ser mais preciso, a de Ashcroft, em palco, na peça Lovers from Viorne, de Marguerite Duras. E esse flash, chegado do passado sem aviso, foi quanto bastou para o encenador decidir atirar-se ao texto – estreia-o esta quarta-feira, sob o título O Teatro da Amante Inglesa, no Teatro da Politécnica, em Lisboa, onde fica até 14 de Abril.

Se tudo começou por uma recordação imprevista, assim que Silva Melo mergulhou a fundo na relação de Marguerite Duras com a história do crime que lhe serviu de inspiração não pôde deixar, ele próprio, de se fascinar com tal obsessão. E isto porque, desde que primeiro tomou contacto com a história, em 1949, Duras ensaiou várias abordagens ficcionadas aos acontecimentos, como se entregue a uma tentativa continuada de atribuir sentido e ordem a algo que desafiava a compreensão.

O crime real, conta Duras no prefácio à obra, teve lugar nesse mesmo ano de 1949 em Savigny-sur-Orge, na região de Essonne, e dizia respeito à família Rabilloux – marido militar reformado, esposa sem trabalho fixo, duas filhas. Uma noite, enquanto o homem lia o jornal, a mulher desfez-lhe o crânio com um martelo; depois esquartejou o cadáver e distribuiu os vários pedaços por comboios de mercadorias, à razão de um pedaço por noite, espalhando os restos do marido por todo o país. Interrogada, confessou prontamente o crime. Duras recriou a história, adaptando-a, nas peças de teatro Les Viaducs de la Seine-et-Oise (1959) e nas várias versões de A Amante Inglesa, assim como no romance homónimo (1967).

As múltiplas versões da peça levaram a que Silva Melo escolhesse levar à cena a tradução de Luiz Francisco Rebello, ainda que colocada em confronto e adaptada de acordo com “a última edição feita em vida” pela autora. “É o texto definitivo, que ela corrigiu, mas cheio de erros.” As pequenas contradições, no entanto, pouco apoquentam o encenador – na história da escritora francesa, o crime é cometido pela mulher contra a sua prima direita, que assume a lida doméstica na vida do casal, ainda que no prefácio refira que a vítima é prima do marido. Silva Melo prefere chamar a atenção para o título da tradução original de Rebello, que perguntava Quem É Esta Mulher? “E é verdade que a questão colocada pela Duras é a de quem é esta mulher que matou, esquartejou e teve a ideia lúgubre de atirar pedaços do corpo pelos comboios de França.”

Resumida a três personagens, a peça coloca-nos diante de um interrogador que se ocupa da confissão, mas que surge não como um polícia ou um juiz – indicando Duras que este deve saltar da plateia para o palco no início do espectáculo. “Sai da sombra, da penumbra, e é como se as perguntas que ele faz fossem as nossas perguntas.” A mulher, não se furtando a responder, pouco diz, lançando pouca ou nenhuma luz sobre as motivações do crime.

“No fundo, depois de a Hannah Arendt falar da banalidade do mal a propósito de Auschwitz, a questão que se põe no final dos anos 50 é a fronteira do mal”, defende o encenador. “Já não é Auschwitz – é onde começa a loucura e onde começa o crime.” E cita A Sangue Frio, de Truman Capote, e Moi, Pierre Rivière, de Michel Foucault, como tentativas contemporâneas deste texto de abordar essa mesma questão. A reflexão sobre a fronteira do mal é levantada pela aparente banalidade das personagens e das acções, uma banalidade que o encenador diz ter fascinado tanto Marguerite Duras quanto a cineasta Chantal Akerman, igualmente atraída então por “personagens horríveis que cometem crimes atrozes, na maior das neutralidades”.

A dificuldade para a actriz, acredita Silva Melo, é apresentar-se “totalmente opaca”. E é isso que vemos na postura de Isabel Muñoz Cardoso, sentada numa cadeira vulgar, respondendo a perguntas sem revelar da sua história tudo aquilo que não sejam factos elementares. Vemos pouco, talvez nada.

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