Imprecisões sobre o estado da Arquitectura

Preocupa-me mais a concorrência feroz entre arquitectos do que a possível concorrência dos engenheiros.

Num texto recente na revista Punkto, o editor Pedro Levi Bismark propõe-nos uma recorrente leitura misantrópica da profissão do arquitecto que há muito merece ser desmistificada (http://www.revistapunkto.com/2017/07/precisoes-sobre-um-estado-presente-da.html). Bismark constrói um discurso de culpabilização que começa por colocar o arquitecto em nada menos que uma espécie de oráculo da construção do mundo, um personagem quase arcano, para logo de seguida nos demonstrar que falha na sua missão espiritual ao não marcar presença nos debates sobre reabilitação, turismo e gentrificação da Porto Vivo e, ao invés, encher salas para ouvir star-architects discorrer verborreia sobre a essencialidade dos seus imensos egos. Ao “recusar a dimensão social e política da própria disciplina”, reduzindo-a a uma actividade essencialmente profissional, o arquitecto supostamente abandona um discurso crítico sobre a cidade ficando consequentemente limitado na sua capacidade de revindicar o direito de influenciar a política do território e do ambiente construído, num quadro em que os engenheiros por oposição ganham terreno legislativo.

Bismark situa um passado impreciso para a oportunidade histórica em que o arquitecto teve todas essas formidáveis competências e as recusou. Um tempo e um lugar que passou, sem sabermos exactamente onde ou quando; algures entre a sorte madrasta de Apolodoro de Damasco e os alvores socialistas na velha Albion de William Morris. Suspeito, porém, que Bismark situa esse espaço-tempo de convergência no baptistério ideológico do SAAL.

Partilho simpatia com muitos dos aspectos nostálgicos da nossa condição pós-industrial e (agora) pós-global, bem como apreço pela ansiedade de Habermas em torno do moderno enquanto projecto incompleto; mas temo que a sua defesa há muito se transformou ela própria em arqueologia académica de perigoso conservadorismo. Os contornos moralistas de frases como “as leis do marketing e do branding são hoje as verdadeiras leis dos novos escritórios” ou “nas últimas décadas os arquitectos abdicaram de qualquer reflexão”, ou ainda, a arquitectura é hoje “uma actividade puramente privada”, sugerem uma profissão destituída de valores, que em tempos teve uma panaceia salvífica para todos estes males. O desprezo implícito no discurso de Bismark pela condição “profissional” do arquitecto expõe a ruptura de pensamento hoje evidente entre a torre de marfim universitária, sempre generosa na sua disponibilidade para reflectir, debater, “criticar e problematizar”, e a impotência dos profissionais, limitados pela mesquinha vulgaridade da sua actividade comercial. Mundos cada vez mais à parte, numa distância que já não escapa à UNESCO, e que parece crescer em paralelo, se não mesmo acelerada, pelos centros de investigação, laboratórios e observatórios sociais das universidades.

Lamentavelmente, não me consigo rever no passado perdido de Bismark. Sou mais velho (mas pouco), e lembro-me de um país miseravelmente construído de norte a sul por desenhadores e engenheiros técnicos, em que a arquitectura era excepção. Em termos internacionais, esse mesmo país tem hoje uma produção arquitectónica muito razoável. Tem uma intelligentsia arquitectónica que reflete, trabalha, propõe e que excede largamente o tal folclore dos prémios Pritzker. Nas últimas décadas viu surgirem novas instituições como a Trienal, a Casa da Arquitectura, Serralves ou o MAAT, editoras como a A+A, Dafne, Monade ou Uzina e, porque não, projectos editoriais como a Punkto, no Porto, ou a NU em Coimbra. 

Sou céptico em relação ao imenso individualismo dos ateliês portugueses e à sua capacidade de enfrentar futuras crises como aquela que tivemos em 2008, mas o limite dessa resiliência é também um acto que pertence à consciência de cada um. Preocupa-me mais a concorrência feroz e consequente esmagamento dos honorários entre arquitectos do que a possível concorrência dos engenheiros. Sem prejuízo do imenso retrocesso civilizacional que o novo quadro legislativo representa, ao autorizar engenheiros civis a fazer arquitectura; o investimento imobiliário, com toda a complexidade e exigência que lhe é inerente, é hoje demasiado elevado para que alguém com o mínimo de discernimento dispense um arquitecto. Sendo a asneira e a ignorância dificilmente reguláveis, diria que se alguém hoje escolhe fazer arquitectura sem arquitectos é candidato ao tal clube pouco recomendável de Groucho Marx.

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