O mar não fala. Os que lhe sobrevivem, sim

Em Caxinas, de onde eu venho, o mar é como a gente. Cresce e mingua, mata e dá de comer. Como se dizia da Quinita e do Alan, pastores alemães que levavam o dinheiro da lota e o peixe do Tio Fernando para casa, ao mar só lhe falta falar. E é pena que não fale, pelo tanto que haveria de nos dizer dos que no seu dorso se fizeram homens, ou dos que ele, espumando de amores pela Lua, engoliu. Houvesse um búzio que nos  salvasse desse silêncio...

Para sabermos do mar, é preciso, pois, procurar na língua da maré os homens e mulheres que se tornaram escravos dos seus humores, e que conseguiram sobreviver a essa incerteza. Elas esperando, com uma roda de filhos e mil tarefas em terra; eles pescando, na ânsia do regresso, dos corpos delas, e de um copo na loja do Caramelho. Para sabermos do mar, e das suas gentes, é preciso escutar o rumor do tempo que se espraia das suas bocas nos dias de brisa, e escrever na areia, para não esquecer.

Há um quarto de século, quando o Fernando Alves, com a sua amada TSF, me abria o Postigo da Noite para o jornalismo - profissão que continuo a namorar, no PÚBLICO, desde 2002 - decidi que não queria esquecer. Ao mesmo tempo que, em Braga, dedicava muito do meu trabalho académico a estudar os meus, em Caxinas, com um amigo, o António Flores Coentrão, iniciei um projecto de entrevistas a antigos pescadores. Tinha, então, o intuito de entregar as respectivas cassetes a António Ferreira Vila Cova, que, provisoriamente, fundara, em 8 de Dezembro de 1991, o seu, nosso, Museu do Mar, numa garagem. Vila Cova sonhava com uma casa definitiva para o nosso património, para a nossa curta, mas intensa, história. Eu sonhava completar esse espólio com a voz e os rostos dos seus protagonistas.

Por motivos diversos, os nossos sonhos desviaram-se do rumo. O museu haveria de fechar no final dessa década, aguardando, desde então, a sua reactivação. E eu entrevistei apenas o António Flores, o Manuel Pontes — que já morreram — e o Fernando Matias Marques. O tio Fernando, com o seu cabelo branco, e a voz rouca, era, no imaginário dos meus vinte anos, o típico caxineiro: embrutecido, mas nada bruto, analfabeto, mas nada burro. E tinha uma memória prodigiosa aquele homem, achava eu, ao vê-lo ali, no salão paroquial, 75 anos feitos, a recordar, por exemplo, os tempos em que a casa que haveria de ser dos meus avós era uma "escola”. A escola que ele, como muitos do seu tempo, não pudera frequentar.

Nunca mais esqueci essa nossa conversa. Nem podia. Os rostos dos mortos, colados nas vitrines dos cafés, denunciavam-me as entrevistas que ficavam por fazer, gritando-me ao ouvido o nome dos homens e mulheres que a idade ou a doença entregavam, como barcos, para abate, sem que alguém - eu, se ninguém mais o fazia - lhes estendesse um microfone e guardasse os diários de bordo. Talvez fosse por ter convivido pouco, cinco anos é nada, com o meu avô Abel… Na verdade nunca cheguei a entender aquela urgência em salvar os velhos, em salvar a memória de pescadores como o tio Fernando ou o tio Acácio Fortunato, que no dia 25 de Março faria também cem anos, e que um dia, em Agosto de 2013, me disse: “Nino, ninguém quer saber da nossa vida para nada!”.

Poucas palavras me doeram como aquelas, que agora recordo. E para me apaziguar o espírito inquietado com tanto património deitado à terra, não tive outro remédio, chegado, em Outubro desse ano, aos 40, que cumprir-me, retomando o rumo daquelas histórias de vida. E com alguns amigos interessados em pegar no remo, criamos a Bind’ó Peixe — Associação Cultural, pregão de rua transformado em apelo colectivo para a necessidade de valorização do património desta comunidade tão cheia de mar, de memória, de identidade. 

Quatro anos passados, a campanha é curta, pouco pescamos ainda, e lamento não ter feito a entrevista de vida que o tio Acácio também merecia. Mas já fizemos algumas boas marés e há momentos que nunca esquecerei, como um chuvoso sábado de Setembro de 2014 em que voltei a sentar-me à frente do Tio Fernando da Rebina. Encontramo-nos no mesmo salão paroquial, para uma nova entrevista, desta vez mais centrada na pesca do bacalhau e realizada por Pedro Magano, com recursos profissionais.

O meu pescador talismã tinha, então, 96 anos. Continuava a criar pássaros coloridos, uma paixão antiga que só há meses abandonou, e continuava capaz de viajar pelos bancos da Gronelândia, e de recordar, com detalhe e emoção, o dia em que, mestre-salga do navio-motor Alan Villiers, salvara o sobrinho Carlos e o cunhado Marcelino da morte certa, na água gelada que tantos conterrâneos sepultou por ali. E pude ouvi-lo, bem disposto, revisitar uma outra viagem em que levou para bordo mais de uma centena de gaiolas com grilos, cujo destino não me chegou, depois a explicar, embora eu imagine que o frio não lhes tenha feito lá muito bem.

Pois bem, o tio Fernando anda há um século entre nós. E ele é um desses nós que nos ata ao tempo, a rostos que até podemos nunca ter visto, mas que o filho mais novo da Ana de Jesus e do António Matias Marques, o da Rebina, no tanto que guarda debaixo da língua, torna reconhecíveis. Em Caxinas, a história faz-se de boca em boca, e o pouco que se escreveu sobre o lugar, mais do que de documentos, valeu-se de homens e mulheres  que, como o tio Fernando, resistem ao salitre, ao vento norte que curva os metrosideros da nova marginal, e que, quando ele era criança, por ali brincava às dunas, espalhando areia pelas nossas casas.

Quanto ele era catraio, e se entretinha no areal, fazendo-se homem roubado à infância, havia catraias na praia de Caxinas. Centenas delas, varadas na areia, com a sua vela latina, à espera de um mar bonançoso e do cardume que alimentasse a gente. Os caxineiros eram, então, mascatos atirando-se à água, sôfregos mareantes sem tempo para carpir as mágoas da morte que se insinuava, como hoje, nas vagas. Eles, ouvi-os dizer tantas vezes, pescavam porque não sabiam fazer outra coisa. E eu, de tanto ouvir falar deles, de tanto os estudar, acrescentaria que pescavam porque o sabiam fazer bem, como poucos.

Não exagero, É ver como eram recrutados, às centenas, para a pesca do bacalhau, desde aqueles primeiros anos do século, levados às vezes, como aconteceu com o nosso homem, aos 14 anos, ainda como moços de copa, sem direito a arrear bote nesses "mares do fim do mundo", como lhes chamou o escritor Bernardo Santareno. É ver, na base de dados dos Homens e Navios de Bacalhau, do Museu Marítimo de Ílhavo, quantos regressavam com o estatuto e o salário de primeiras linhas, ou de especiais, fruto de uma destreza e de uma ambição que suplantava as terríveis condições em que se trabalhava na pesca à linha. Em cada dez portugueses que foi à Terra Nova durante o Estado Novo, um era deste território do norte de Vila do Conde, e no qual incluo, pela sua proximidade, a Póvoa de Varzim.

O Fernando da Rebina começara em 1934 e, em Maio de 1937, assistiu à carga policial, que aqui como nas restantes grandes comunidades piscatórias do país, esmagou a greve que, desde Fevereiro, impedia o início da campanha desse ano, em protesto contra as novas regras de trabalho impostas pelo recém-criado Grémio dos Armadores de Navios da Pesca do Bacalhau. Questiono-me quantos portugueses teremos, ainda vivos, capazes de recordar esses dias de chumbo, bem descritos pelo historiador Álvaro Garrido em várias das suas obras sobre o tema, em que houve pescadores levados directamente dos calabouços para os navios, e em que nenhum homem recebeu a parte do salário paga habitualmente na matrícula, para evitar greves de zelo durante a curta viagem desse ano. Na qual apenas foi entregue, no fim, a componente variável do ganho, dependente do que cada um pescasse. De tantos  que o terão vivido, quantos se lembrarão? Em Caxinas, só ele.

“Eu nasci em 1918, no dia 1 de Março. Já não tinha pai”. Mais de 96 anos depois desse dia, Fernando Matias Marques, o tio Fernando, respondia-me assim, em 2014, à primeira pergunta desse nosso segundo encontro perante as câmaras, acrescentando que, por essa condição de órfão, a mãe, amiúde, desabafava: “Ai filho, quem te há de criar?”.  Ana de Jesus viveu até aos 97 anos. O filho, que lhe terá herdado os genes da longevidade, criou-se e criou 11 rapazes e raparigas. Sobreviveu a vários deles e convive, agora, com uma família numerosa, a que temos de acrescentar a comunidade, que vê nele uma espécie de monumento vivo e símbolo de uma história comum.

E o Tio Fernando é, de facto, um monumento, representando várias gerações de homens e mulheres criados no mar. E mesmo que não haja catraias na praia, nem casa do Salva-Vidas, nem rampa do portinho; mesmo que o nosso farol seja apenas um cruzeiro sem luz apontada ao horizonte, ainda é a pesca o que nos define. E por isso ele, e muitos outros, são um património que a minha geração tem a obrigação de escutar e preservar, celebrando-os, como fizemos com este nosso amigo centenário, no dia 1 de Março. Porque se o mar não fala, temos de procurar a nossa voz naqueles que lhe sobrevivem.