Como se escreve o presente, ou o silêncio antes da ficção

A pergunta é simples: como é que a ficção escreveu os últimos 28 anos? A leitura revela que é preciso tempo e que a literatura precisa de que um pouco de memória se sedimente para ser possível achar palavras que vão além da banalidade.

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Nova Iorque, 11 de Setembro de 2001: em O Homem em Queda DeLillo ficcionou a imagem mais icónica desse dia RICHARD DREW

Há coincidências. Salman Rushdie mal acordara quando recebeu um telefonema de um jornalista. Estava em Chicago e na noite anterior deitara-se tarde, depois de uma leitura do seu mais recente romance num teatro local. Estava a poucas horas de apanhar um voo para Minneapolis. Ao telefone, a jornalista com quem agendara uma entrevista na rádio vinha dizer-lhe que já não podia fazê-la. "Por causa do que aconteceu em Nova Iorque, temos de nos aplicar a fundo na cobertura disso", ouviu. Não fazia ideia daquilo a que ela se referia, mas aceitou a sugestão de ligar o televisor. Foi quando o segundo avião caiu.

"Não conseguiu sentar-se. Não lhe parecia bem sentar-se. Ficou de pé, diante do televisor, com o comando na mão, e o número cinquenta mil não parava de se repetir no seu cérebro. Trabalhavam cinquenta mil pessoas nas Torres Gémeas. Não podia imaginar o número de mortos. Pensou na sua primeira noite na cidade de Nova Iorque, na sua visita ao Windows on the World. Lembrou-se de Paul Auster lhe falar da travessia de Philippe Petit entre as duas torres. Mas sobretudo limitou-se a ficar ali especado a ver os edifícios a arderem e depois, com atroz incredulidade, exclamou, ao mesmo tempo que milhares de pessoas em todo o mundo, quando a Torre Sul caiu: ‘Não está lá! Já não está lá!"

O episódio vem narrado em Joseph Anton, livro de memórias que Rushdie publicou em 2012, onde conta os anos de clandestinidade depois da fatwa decretada pelo do islão em consequência da publicação d’Os Versículos Satânicos, 12 anos antes. A coincidência é que o seu mais recente romance, Fúria (D. Quixote), falava precisamente de uma Nova Iorque tomada pela fúria terrorista. Na capa, outra das suas torres emblemáticas: o Empire State Building. Muitos lhe pediram que escrevesse qualquer coisa, mas havia a sensação de que uma nova e determinante memória se estava a construir a partir daquele dia, e estava longe de estar sedimentada, ou talvez nunca viesse a sedimentar-se, já que a condição da memória parece ser a sua plasticidade em função do tempo. Ali, era o presente. E o presente era feito de um horror impossível de descrever. "Muitas das primeiras reflexões pareciam-lhe redundantes. Toda a gente tinha visto o horror e não precisava que lhe dissessem o que sentir a esse respeito. Depois, aos poucos, os seus pensamentos coalesceram." Passadas duas semanas foi capaz de escrever um artigo em que questionava a forma de derrotar o terrorismo. "Não nos deixando aterrorizar. Não deixando o medo governar a nossa vida. Mesmo que estejamos assustados." Era uma opinião, como muitas que surgiram e que ainda ecoam estranhamente quase 17 anos depois. Era um ataque civilizacional.

Não havia ficção possível de elaborar. Essa parecia ter sido escrita antes, pelo mesmo Rushdie em Fúria, como se lia em certos jornais. Mas ele não acreditava em profecias nem premonições. Perante o horror, só lhe surgia como concebível o estado prolongado de silêncio, a perplexidade e um monte de interrogações.

Demora. Eis o que aparenta ser parte da resposta acerca do modo como se escreve ficção sobre o presente. É preciso tempo para criar distância. Foi assim em relação ao acontecimento mais mediático e transformador dos últimos 28 anos. A boa literatura leva tempo a digerir o presente quando se quer construir sobre ele. De tal forma que, quando acontece, é inevitavelmente uma elaboração sobre o passado recente. Foi assim com o 11 de Setembro, com o fim da era soviética, com as guerras do Iraque; ainda não aconteceu uma grande narrativa sobre a actual crise dos refugiados; mas também foi assim com o furacão Katrina, a grande fome dos anos 1990 na Coreia do Norte, a guerra da Tchechénia, o ataque com gás sarin no metro de Tóquio em 1995, as transformações tecnológicas e os escândalos como o do WikiLeaks. Há bons romances sobre estes acontecimentos que marcaram os últimos 28 anos e cujos ecos continuarão a sentir-se e a contaminar a vida e, logo, a arte.

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LEEFEST

Tentar preencher o vazio

Mas no imediato pós-11 de Setembro, todos andavam à procura de sinais que ajudassem a entender esse Fúria, de Rushdie, mas ele não foi o único escritor alvo dessa atenção cirúrgica. Também aconteceu com um dos mais aclamados e também mais criticados livros de Don DeLillo. Cosmopolis (Relógio d’Água, 2004). A narrativa sobre um dia numa Nova Iorque paralisada por um acontecimento seria lida como referência a esse dia. Saiu em 2013 e o autor garante que estava a escrevê-lo quando as torres caíram. Na sua ideia estava Ulisses, de James Joyce, nas suas 24 horas em Dublin, e não Bin Laden e o terror em Manhattan. Foi difícil convencer a opinião pública que viu no livro de DeLillo um acto leviano. E nessa visão um sinal de que era cedo, a cidade ainda estava de luto e a memória demasiado viva para ser ficcionada.

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Um dos grandes romances sobre o 11 de Setembro viria em 2005 e foi escrito pelo então menino bonito das letras americanas, Jonathan Safran Foer, descoberta de Joyce Carol Oates, de quem foi aluno e a quem ela incentivou à escrita. A sua estreia, em 2002, com Está Tudo Iluminado, foi muito aplaudida. Três anos mais tarde vinha Extremamente Alto e Incrivelmente Perto. Iria confirmá-lo entre os grandes. Foi o tempo em que outro Jonathan estava em alta na cotação americana e a piada era que parte do talento estaria no nome. O outro era Jonathan Franzen, que, curiosamente, viria a escrever um livro sobre o presente tecnológico a partir do WikiLeaks. Falaremos dele adiante.

Foer, nova-iorquino de ascendência judaica, tinha apenas 28 anos quando publicou Extremamente Alto e Incrivelmente Perto. O narrador é um rapaz de nove anos, Oskar Schell, que encontra a chave que o pai deixou numa jarra um ano antes de morrer nos atentados ao World Trade Center. Oskar enceta uma viagem na pista dessa chave por toda a Nova Iorque a partir do que Foer classifica como o sexto grande bairro nova-iorquino, além de Manhattan, Bronx, Brooklyn, Queens ou Staten Island; o bairro marcado pelo grande vazio que foi o 11/9. Curiosamente, excertos deste romance foram considerados potencialmente causadores de trauma e capazes de criar simpatia nos jovens pela causa islâmica em algumas escolas dos Estados Unidos. "Oskar é alguém com uma imaginação hiperactiva com a qual tenta compensar as coisas em falta." É assim que o leitor se sente ao tentar preencher o vazio deixado por um mundo que sabe ter terminado sem descortinar o que irá ocupar esse lugar. DeLillo escreveu isso num ensaio na Harper’s em Dezembro de 2001 e chamou-lhe justamente As Ruínas do Futuro.

São escritores a tactear sobre as melhores palavras para escrever sobre o seu presente quando tudo está a acontecer. Talvez o 11 de Setembro seja mesmo o caso mais paradigmático destes anos, mas não é o único que mostra a necessidade de silêncio antes da escrita.

Don DeLillo haveria de ficcionar o pós-11 de Setembro ou, como ele referia, a narrativa do terror, escrita por terroristas que queriam que ao presente se seguisse o passado e não o futuro na sua acepção de evolução. Dramaticamente, a mesma narrativa que continua a surgir com novos e enredados episódios que contaminaram o modo de vida que todos apostaram em não deixar que estivesse em risco apesar do terror.

Don DeLillo ficcionou o 11 de Setembro em 2007, com O Homem em Queda (Sextante, 2013), título a remeter para as torres em chamas e a imagem mais icónica desse dia: um homem a lançar-se no abismo. O livro saiu seis anos depois daquele dia, seis anos após a sua primeira visita ao cenário "cinzento". Encomendaram-lhe um ensaio, mas ele reconhece que o seu instinto, na hora, era o de romancista. Contou numa entrevista: "Eu precisava de ver as coisas, precisava literalmente de cheirar as coisas. Queria começar ao nível mais baixo, ao nível da rua." Demorou-lhe seis anos.

Arranjar palavras

Um salto na geografia, outro salto no tempo. É o dia 11 de Março de 2004. "Quando o primeiro comboio foi pelos ares, derramando sobre as nossas pequenas e esforçadas vidas um aluvião de sangue, cólera e medo, eu estava sentado diante da minha velha mesa de freixo australiano e corrigia umas provas de Os Demónios, de Fiódor Dostoiévski." Eram 7h37 em Madrid e o horror repetiu-se, como o narra Ricardo Menéndez Salmón, escritor asturiano de 46 anos, em O Revisor, original de 2010, ou seja, publicado seis anos depois dos atentados de Atocha. "É verdade que hoje, quando tantas coisas aconteceram desde essa altura e muitas daquelas emoções foram filtradas pela peneira da reflexão, tudo parece menos confuso, mais simples de compreender, mas durante as horas desta crónica, todos os que lá estivemos (e julgo que todos, de uma maneira ou de outra, estivemos lá) sentimos que os bons tempos estavam a chegar ao fim."

A citação, voz do narrador deste romance breve na perspectiva de um revisor de provas, explica a necessidade do tal tempo para tentar arranjar palavras. Ele perde-se nelas. Não vê como corrigir o erro, "errata incorrigível", a do real que anuncia qualquer coisa nova, imutável. E o escritor às voltas com uma crónica que sabe de compreensão limitada.

No mesmo ano, 2010, o português Pedro Rosa Mendes dava forma literária a outro acontecimento. "Às 9 horas da manhã de sábado, 4 de Setembro de 1999, no Hotel Ma’hkota, em Díli, Ian Martin, chefe da missão internacional, anunciou os resultados da consulta popular em Timor-Leste: 21,5 por cento tinham votado a favor da autonomia, 78,5 por cento votaram contra." Vencia a independência e nascia um país, Lorosae. É o início de Peregrinação de Emmanuel Jhesus (D. Quixote), a história de um território chamado Timor, primeiro grande livro que mergulha na essência de um mundo que, nove anos antes, despertara consciências através de um massacre. Foi em 1991. Seguiram-se paixões e só muito mais tarde a tal semente de lucidez que permite a forma literária.

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Jesmyn Ward John D. and Catherine T. MacArth

Como este excerto de outro livro: "O furacão envolve-me na sua mão. Deslizo. Aterro no ramo mais grosso, a madeira arranha-me, o balde ressoa, não consigo respirar, os meus olhos enchem-se de lágrimas (…). Olho para trás e vejo o pai a voar pelos ares. Bate no ramo com tanta força com o torso que o seu corpo se dobra em dois e o rosto quase mergulha na água. Fica imóvel, em estado de choque; o impacto deixou-o sem ar. Olha para nós, pestaneja. Sussurra uma ordem, mas não conseguimos ouvi-la, apenas vê-la: Vão." Agora é Jesmyn Ward, escritora do Mississípi no seu pungente romance de estreia. No Coração da Tempestade (Porto Editora), vencedor do National Book Award, uma revelação promissora que se cumpriu nas obras seguintes. No ano passado conquistou o prémio pela segunda vez. Mas foi o olhar sobre o Katrina que a revelou ao debruçar-se sobre a existência de uma família pobre de um bairro miserável no tempo em que um furacão revelou as fragilidades de uma grande potência perante um desastre natural, e pôs ainda a nu o lado mais primário da substância humana.

Entre 2005, ano do furacão, e 2011, ano do livro, foram seis anos. Dave Eggers, a quem já chamaram a consciência da América liberal, levou um ano menos a sair com outro dos melhores livros sobre a tempestade. Em Zeitoun (Quetzal) conta a história de uma família de sobreviventes de origem síria. Para isso, o escritor foi até à lama do Mississípi e decidiu-se por uma crónica não ficcional — mesmo recorrendo a um tom profundamente literário —, para sublinhar a sua impossibilidade de ser imparcial. Refere isso mesmo em nota prévia: "Este livro não procura ser uma obra exaustiva acerca de Nova Orleães ou do furacão Katrina. É somente um relato das experiências de uma família antes e depois da tempestade. Foi escrito com a plena participação da família Zeitoun e reflecte a sua visão dos acontecimentos."

Também o japonês Haruki Murakami optou pela não-ficção para escrever sobre o ataque com gás sarin no metro do Tóquio a 20 de Março de 1995. Três anos mais tarde saía Underground (Tinta-da-China), livro construído com base em relatos de sobreviventes. E a explicação: "As palavras podem, por vezes, ser praticamente inúteis, mas enquanto escritor são tudo o que tenho."

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Laurent Gaudé PEDRO MAIA

Outra vez o terrorismo. O nosso tempo gira à volta dele e do medo que produz. E é ele a fazer girar quase tudo. Laurent Gaudé, escritor francês, persegue-o em Escutai as Nossas Derrotas (Porto Editora). Vai à guerra. Iraque, Afeganistão. Persiste no Iraque e entra na arqueologia para questionar a civilização. Está entre destroços e a teia dos serviços secretos norte-americanos, a mordaça de regimes fascistas. Publicado em 2006, o livro propõe uma reflexão, a necessidade de um escritor escrever. "Tudo o que se vai depositando em nós ano após ano sem darmos conta — rostos que julgávamos esquecidos, sensações, ideias que juraríamos ter fixado definitivamente e que depois desapareceram, regressam, desaparecem outra vez, sinal de que não nos apercebemos mas que nos vai transformando (…), porque se torna evidente que o tempo passou e não sabemos se será possível viver com tantas palavras…"

O norte-americano Anthony Marra foi à devastação causada pela guerra na Tchetchénia, chega à Sibéria, passa por São Petersburgo num dos livros mais perturbadores sobre os actuais conflitos naquela parte do mundo. O livro? É de 2015 e chama-se O Czar do Amor e do Tecno. Brilhante no estilo e nas palavras.

Nova volta ao atlas. Coreia do Norte. Bandi é pseudónimo de um escritor que traz a grande fome que assolou o seu país após a morte de Kim Il-sung, em 2004. Ele fala do segredo em que permanece esse território, quer ser porta-voz do seu povo para o mundo. E fá-lo em A Denúncia (Alfaguara), raro livro de ficção sobre a Coreia do Norte publicado e 2016.

Estamos em território de memórias próximas. Enumerem-se os acontecimentos dos últimos 28 anos no mundo e o que deles resulta em literatura ainda é pouco. Os títulos e autores aqui referidos não pretendem ser exaustivos. São exemplos. Faz-se o regresso à pergunta inicial: como escrever o presente? E eis um novo título, Purity, este de 2015 (D. Quixote), de Jonathan Franzen. Ele contém a Europa a desfazer-se do Leste e Oeste, fim do muro, até aos desafios de agora trazidos pelas novas tecnologias. São estes 28, 29 anos. É o presente virtual. Um novo tempo. Como o definir?, Como o conjugar? Está acontecer.

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