A água ou a vida!

Os desafios que se colocam à gestão eficiente da água em Portugal passam obrigatoriamente por considerar a monitorização como parte integrante e fundamental dos sistemas hídricos, e por uma adequada ligação entre os centros de investigação nacionais com a Administração.

A ocorrência de fenómenos hidrológicos extremos está sempre associada a grandes dificuldades na pronta e adequada resposta por parte das autoridades políticas e administrativas responsáveis pela gestão do território. O inexorável aquecimento global do planeta, reconhecido por credíveis projecções científicas, com impactos imediatos em alterações climáticas e, em particular, no ciclo hidrológico e na alteração do ciclo de nutrientes, vem aumentar a complexidade da gestão da água, tanto nos seus aspectos quantitativos como qualitativos.

Na realidade, as alterações do ciclo hidrológico, com o agravamento das perturbações no regime pluviométrico, podem conduzir a uma maior regularidade de fenómenos de seca extrema e de alteração de regimes de caudais fluviais com consequências directas na alteração dos canais de escoamento (zonas de cheias e sedimentos), na alteração da hidrodinâmica de estuários e de zonas costeiras e na alteração e extinção de espécies da fauna e da flora autóctones.

Em Portugal, estes impactos negativos podem ainda ser significativamente amplificados se tivermos em consideração a variabilidade espacial e temporal da distribuição da precipitação e a grande dependência das afluências espanholas nas suas maiores bacias hidrográficas (as bacias internacionais representam 64% do território e 67% das disponibilidades hídricas nacionais).

Recentemente, a sociedade portuguesa foi confrontada com acontecimentos relacionados com a gestão dos recursos hídricos merecedores de preocupação especial. Citando apenas alguns dos casos que causaram alarme público traduzido por abundante noticiário e comentário mediático, podem referir-se as cheias de 2016 em Coimbra, a seca no Verão de 2017 que se prevê estender-se para 2018, o cumprimento da Convenção Luso-Espanhola (CLE), a degradação da qualidade das águas fluviais, e a ruptura de abastecimento de água para o consumo humano em grandes áreas urbanas.

Em todos estes acontecimentos, reconhece-se na actuação da Administração, com perplexidade, o denominador comum de uma confrangedora falta de capacidade de previsão, de fiscalização, e de monitorização adequada, bem como a ausência de uma política institucional de gestão de riscos na utilização dos recursos hídricos. Esta realidade é ainda mais dramática quando, por imposição da União Europeia, foram realizados recentemente investimentos avultados na elaboração de planos de gestão que deveriam assegurar as ferramentas e os programas de medidas para uma melhoria significativa do estado da qualidade das águas superficiais e subterrâneas, mas a realidade revela tantas fragilidades na gestão corrente.

Na ausência de uma monitorização eficaz, a abordagem institucional à gestão de recursos distribuídos pelo território nacional, na prática, tem-se revelado ineficaz e só tem aproveitado aos diferentes utilizadores, relaxando a protecção dos recursos hídricos. Desta realidade, é sintomática e inexplicável a estéril discussão sobre mudanças climáticas quando, na prática, não existe uma adequada monitorização na maior parte das bacias hidrográficas portuguesas onde, desde 2010, deixou de haver medições de precipitações e de caudais nos rios, informação de base fundamental para qualquer política de gestão da água efectiva e responsável.

Esta realidade afigura-se inquietante quando se verifica que os procedimentos adoptados na gestão de recursos hídricos do nosso país se têm mantido inalterados nas últimas décadas, relativizando as imposições legais da Lei da Água (que transpõe para a ordem jurídica nacional a Directiva-Quadro da Água), desvalorizando os avanços nas tecnologias associadas à monitorização, simulação e previsão, privilegiando temáticas denominadas “ambientais” em detrimento das disciplinas fundamentais de Hidrologia e de Hidráulica.

Ora, regressando aos exemplos acima explicitados, verificam-se omissões graves relacionadas com a relativa desvalorização destas disciplinas: nas inundações de Coimbra em 2016, onde se verificaram deficiências na aplicação das normas de operação hidráulica dos aproveitamentos hidroeléctricos e na monitorização da morfodinâmica do sistema fluvial; na cidade de Viseu onde, em Novembro de 2017, por falta de um plano de segurança da água, não foi possível recorrer a reservas de água para consumo humano, necessárias para suprir o abastecimento público em períodos de seca moderada; no acompanhamento eficaz da CLE, por não existirem dados hidrométricos e de precipitação na parte nacional das bacias internacionais; o recente episódio grave de poluição no rio Tejo, por não haver imposição de limites de descarga de efluentes, tendo em consideração os regimes de caudais naturais dos meios receptores.

Face a estes desafios societais, a sociedade deve mobilizar-se, adquirindo e aplicando o conhecimento e as tecnologias mais actualizadas, sobretudo em situações de incerteza e aleatoriedade, características dos fenómenos naturais. Por isso, é de crucial importância revisitar a estrutura organizativa da gestão da água em Portugal e dotá-la das adequadas competências humanas e tecnológicas. A contínua decapitação técnica das administrações central e regional, com o recurso a outsourcing para suprir as necessidades detectadas, deve ser contrariada com a dotação de meios humanos com as competências adequadas para compreender a complexidade hidrológica e hidráulica dos sistemas de águas superficiais e subterrâneas. As enormes potencialidades dos resultados da investigação e desenvolvimento em áreas tecnológicas emergentes devem ser cada vez mais acarinhadas e incorporadas numa política integrada e moderna de gestão da água.

Um exemplo é o do alívio dos efeitos da seca e da crescente urbanização sobre os sistemas urbanos de água, com a utilização de eficientes tecnologias de tratamento e de estratégias de reúso da água.

Outro exemplo é o da aplicação do conhecimento aduzido pela nova disciplina de Hidroinformática (resultante da integração das tecnologias de informação com a Hidráulica Computacional) na melhoria da capacidade de simulação, previsão e gestão de sistemas hidrológicos e hidráulicos complexos. A Escola de Engenharia da Universidade do Minho, através do seu centro de investigação CTAC, tem desenvolvido diversas plataformas tecnológicas (sistemas de informação e bases de dados, bases de modelos e definição de sistemas de suporte à decisão) que permitem, por exemplo, tendo por base as previsões de precipitações, antecipar o seu efeito nos caudais, níveis fluviais e na respectiva qualidade da água.

Os desafios que, no futuro imediato, se colocam à gestão eficiente da água em Portugal passam obrigatoriamente por considerar a monitorização como parte integrante e fundamental dos sistemas hídricos (incluindo dados de satélite, radares meteorológicos e sensores locais) e por uma adequada ligação entre os centros de investigação nacionais com a Administração, condições sem as quais se perpetuarão as actuais formas ineficazes de gestão dos recursos hídricos nacionais.

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