Para sobreviverem, há animais que terão de mudar a cor do casaco de peles

Identificadas áreas do planeta onde a evolução pode salvar espécies ameaçadas pelas alterações climáticas. Mas, para isso, essas têm de ser preservadas.

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Lebres-americanas branca e castanha durante o Inverno L.S. Mills/Jaco/Lindsey Barnard

Num planeta cada vez com menos neve devido às alterações climáticas, como irão sobreviver as espécies que no Inverno mudam de penas ou pêlo para se camuflarem nesse manto branco? Uma equipa, que inclui cientistas do Centro de Investigação de Biodiversidade e Recursos Genéticos (Cibio-InBio) da Universidade do Porto, procurou uma resposta através da identificação das áreas do planeta onde as espécies que mudam de coloração entre estações terão mais possibilidade de adaptação às alterações do clima.

Coordenada por L. Scott Mills, da Universidade do Montana (EUA), a investigação publicada na revista Science mapeou regiões onde indivíduos da mesma espécie coexistem no Inverno com pêlo de duas cores – ou branco ou castanho. A estas regiões a equipa chama “zonas polimórficas”.

A explicação para a coexistência de indivíduos com pêlo branco e castanho passa pela adaptação (ou evolução até) das espécies, para se tornarem mais resilientes ao ambiente, permanecendo com a coloração de Verão durante todo o ano. Num planeta com menos neve e o solo castanho mais exposto, estas espécies não têm dificuldade em confundir-se com a paisagem, para evitarem (ou até realizarem) a predação, de modo a sobreviverem.

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Lebres-americanas branca e castanha durante o Inverno L.S. Mills/Jaco/Lindsey Barnard

Aqui o que importa são estas “áreas de transição”. José Melo Ferreira, um dos dois cientistas do Cibio-InBio que participaram neste trabalho (o outro foi Paulo Célio Alves), explica que as áreas polimórficas têm um enorme “potencial para permitir que alguns indivíduos da população possam persistir”. Contudo, o investigador sublinha que “estas zonas polimórficas não são fortalezas mágicas que agora vão resolver o problema todo”.

Actualmente, estão identificadas 21 espécies de aves e mamíferos em que alguns dos seus indivíduos mudam sazonalmente de plumagem ou de pelagem. O estudo centrou-se em oito espécies e as restantes 13 não foram tidas em conta por falta de dados.

Nessas oito espécies (quatro de lebres, três de doninhas e a raposa-do-árctico), os cientistas recolheram informações sobre a mudança de pelagem em cerca de 2700 exemplares de mais de 60 países, em publicações científicas e exemplares em museus. A partir destes dados, construíram modelos matemáticos de previsão, que permitiram identificar padrões numa grande quantidade de dados e, dessa maneira, fazer projecções sobre o que poderá vir a acontecer.

Houve resultados esperados: as espécies com pelagem branca terão maior prevalência em regiões com maior duração de neve. Porém, os cientistas conseguiram apontar zonas específicas onde os animais tenderão a apresentar, no Inverno, uma pelagem branca e castanha – as zonas polimórficas, onde estas espécies podem evoluir para se adaptarem melhor a uma temporada de Inverno cada vez mais curta.

Porquê as mudanças sazonais

Mas como ocorrem estas alterações nas espécies? Primeiro, há que ter em conta que a mudança sazonal das penas ou do pêlo é desencadeada pelo fotoperíodo. “Quando o número de horas com luz atinge um determinado nível – por exemplo, quando caminhamos para o Inverno e os dias ficam mais pequenos –, há uma cascata hormonal que faz com que a muda aconteça”, explica José Melo Ferreira.

Seria de esperar que este fenómeno continuasse vigente na espécie sem grandes alterações, uma vez que as horas de sol em pouco ou nada diferem de ano para ano ou década para década. Então o que é que desencadeou esta evolução, estas mutações genéticas em que alguns indivíduos de uma espécie mudam a cor de pêlo nas estações do ano e outros não? O acaso.

“A evolução não funciona por vontade”, assegura o investigador. “Há sempre alguns indivíduos que vão estar mais bem preparados do que outros, porque têm características genéticas que permitem uma melhor adaptação.” É o chamado “resgate evolutivo”, aqui em todo o seu esplendor.

Os animais mais bem adaptados ao meio tendem a sobreviver e a reproduzir-se mais, o que faz com que de geração em geração estas características acabem por dominar a população. Por outro lado, aqueles que “infelizmente não nasceram com a sorte de terem características que lhes davam uma maior adaptação” tendem a morrer mais facilmente. Como a mortalidade é maior nestes indivíduos, essas características tendem a diminuir, até se perderem. “Isto é o princípio-base da evolução natural”, remata José Melo Ferreira.

“Ao mudar a cor da plumagem ou da pelagem de castanho, no Verão, para branco, no Inverno, estas espécies conseguem manter-se camufladas num fundo que também muda de castanho, sem neve no Verão, para branco, com neve no Inverno. Evita-se, sobretudo, a predação”, explica ainda o investigador. “Contudo, algumas espécies também são predadoras e isso pode facilitar esta relação ecológica, porque se mantêm mais facilmente escondidas para atacar as presas. Mas pensa-se que o principal factor para a ocorrência deste mecanismo seja mesmo tentar evitar a predação.”

Nestas mudanças sazonais do pêlo e das penas, José Melo Ferreira também não exclui a importância das propriedades termorreguladoras deste mecanismo, uma vez que a pelagem ou plumagem das espécies no Inverno tende a ser mais densa, de modo a que exista uma maior protecção em relação ao frio nesta época do ano.

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Lebre-americana com o pêlo de Inverno Paulo Célio Alves

A verdade é que tanto a lebre-americana (Lepus americanus) como a lebre-variável (Lepus timidus), lebre-japonesa (Lepus brachyurus), a lebre-de-cauda-branca (Lepus townsendii), a doninha-de-cauda-longa (Mustela frenata), a doninha (Mustela nivalis), o arminho (Mustela erminea) e a raposa-do-árctico (Alopex lagopus), as espécies que serviram de modelo no estudo, terão nas zonas polimórficas uma solução: um modo de contornar a extinção, que passa por perderem o mecanismo de mudança sazonal do seu pêlo.

“As doninhas do Sul dos Estados Unidos e as lebres na Irlanda, por exemplo, evoluíram para manter a pelagem castanha todo o ano”, frisa Scott Mills, citado num comunicado do Cibio-InBio. “Esta é uma adaptação genética para manter a camuflagem onde a neve é intermitente ou rara.”

Sempre com o objectivo de saber mais acerca da mudança sazonal da coloração das espécies, numa perspectiva evolutiva da conservação, uma das coisas que a equipa pretende descobrir são os genes envolvidos neste mecanismo.

Uma metáfora

José Melo Ferreira é assertivo ao dizer que as zonas polimórficas estão ameaçadas pelas alterações climáticas, ao provocarem a redução da neve. “Ao continuar assim, podemos prever que estas zonas polimórficas irão avançar em direcção a norte”, sublinha.

Se há aí espécies que têm características que lhes permitirão adaptar-se e sobreviver às alterações climáticas, outras nem por isso. “Estas espécies e regiões têm potencial para responder às questões climáticas, mas não as podemos deixar ao abandono. Temos de fazer alguma coisa”, acrescenta.

Acresce que poucas zonas polimórficas com várias espécies estão classificação como áreas protegidas – apenas 10%, refere o artigo científico. A partir da identificação dessas zonas de potencial adaptativo elevado, divulgadas na Science, os cientistas podem agora promover o resgate evolutivo, tentando manter as populações naturais abundantes e ligadas entre si. “As áreas polimórficas têm o ingrediente especial para um rápido resgate evolutivo. Como contêm indivíduos castanhos no Inverno que estão bem adaptados a Invernos curtos, nas populações polimórficas haverá tendência para que ocorra uma evolução rápida no sentido de se ser castanho no Inverno em vez de branco, à medida que as alterações climáticas continuam”, nota Scott Mills.

Para já, podemos ver nas discrepâncias entre a cor do pêlo de um animal e da paisagem uma metáfora, como remata o artigo científico. “O desajuste na cor do revestimento sazonal é uma metáfora visual de como as alterações climáticas podem afectar a biodiversidade.”

Texto editado por Teresa Firmino

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