Isto não é sobre sexo. Isto é sobre poder

Para compreender a polémica em torno dos casais recasados é preciso recuar aos sínodos da família de 2014 e 2015. O que aí aconteceu foi isto: o Papa perdeu.

O Vaticano não é para meninos de coro, e por isso a nossa memória dos últimos três Papas tem uma coisa em comum: homens consumidos até à exaustão. João Paulo II morreu à nossa frente; Bento XVI abdicou com estrondo; a energia de Francisco esfumou-se em três anos. Ainda assim, Jorge Bergoglio está a tentar mudar a Igreja Católica como já não se via desde João XXIII. Uns ficaram muito contentes, outros ficaram muito tristes. Os primeiros admitem-no. Os segundos, não.

Para compreender a polémica em torno dos casais recasados é preciso recuar aos sínodos da família de 2014 e 2015. O que aí aconteceu foi isto: o Papa perdeu. Francisco nunca desejou mudanças profundas na doutrina, mas quis mudanças na forma como a Igreja acolhe aqueles que considera pecadores. Uma Igreja demasiado prescritiva – acredita ele – é anti-evangélica: o caminho de Jesus foi sempre de acolhimento e de simplificação em relação a uma leitura demasiado restritiva e regulamentada da palavra de Deus. Curou ao sábado; sobrepôs o perdão à punição do pecado; resumiu os dez mandamentos a dois.

Por isso, ao convocar o sínodo da família, Francisco considerou o problema dos casais recasados uma prioridade. Infelizmente, não conseguiu alcançar qualquer consenso. Num gesto provocador, cinco cardeais publicaram o livro Remaining in the Truth of Christ: Marriage and Communion in the Catholic Church nas vésperas do primeiro sínodo, defendendo que não poderia haver cedências nessa matéria. Ao lançar, em 2016, a exortação apostólica A Alegria do Amor, Francisco foi obrigado a manter-se ambíguo em relação ao tema. Ambíguo – mas não conformado.

A solução que encontrou foi habilidosa: agarrou na interpretação liberal que os bispos argentinos fizeram da sua exortação e disse que ela estava certa e não havia outra. Sim, do documento consta a tal “vida em continência”, mas isso era apenas milho para os pardais – o importante é que a resolução do problema era enviada para o nível pastoral. Como quem diz: cada pastor é que sabe aquilo que cada ovelha necessita. Isso é tudo o que Francisco quer ouvir. A teoria mantém-se, a prática altera-se. E por isso, ele resolveu saltar por cima das conferências episcopais e interpelar directamente os bispos para reflectirem sobre a matéria. A única forma de fazer avançar a Igreja sem criar mais cismas é com mudanças locais.

D. Manuel Clemente chamou-lhe um “discernimento dinâmico”, o que na prática significa isto: as paróquias mais conservadoras continuam a ter à sua disposição as respostas inflexíveis que tanto apreciam (incluindo a bizarria do celibato entre casais e a promoção da indústria das nulidades), mas as paróquias onde a recusa dos sacramentos a certos cristãos recasados é vista como uma crueldade anti-evangélica já não estão condenadas a afastá-los para todo o sempre dos sacramentos. Esta segunda possibilidade coloca metade do Vaticano com os cabelos em pé.

O padre Miguel Almeida, que sobre este tema escreveu um texto com o qual concordo pouco (“O Patriarca e o sexo dos recasados”) e um texto com o qual concordo muito (“A reforma mais difícil de Francisco”), disse tudo em três frases: “Juntemos a descentralização da autoridade eclesial a uma real importância dada à consciência dos fiéis e temos o fim do clericalismo. Esta é a grande bomba da reforma bergogliana. E é certamente uma das causas escondidas, mas poderosa, das grandes críticas a Francisco.”

Isto não é sobre sexo. Isto é mesmo sobre poder.

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