A paz (im)possível na Síria: a memória da guerra no Líbano

Se a memória da longa guerra civil libanesa serve para alguma coisa, é para mostrar a futilidade destrutiva da guerra e como as divisões sectárias tornam uma sociedade refém de poderes externos.

1. A Síria partilha com o Líbano muita coisa em comum. São Estados vizinhos situados no Mediterrâneo oriental inseridos na região conturbada do Médio Oriente. Ao mesmo tempo, têm um passado largamente similar. Entre o século XVI e inícios do século XX fizeram parte do Império Otomano. Após o colapso deste, no final da I Guerra Mundial, foram territórios sob administração francesa enquadrados pelo mandato da Sociedade das Nações (SdN), que perdurou até final da II Guerra Mundial. A Síria e o Líbano modernos, com a actual configuração territorial, são um resultado directo da presença francesa no Levante mediterrânico, dos seus interesses na região, e da forma como esses territórios foram governados. No caso da Síria, aspecto ainda hoje relevante, há a questão territorial do sanjak de Alexandreta. Trata-se de uma região que estava, também, sob administração francesa, mas foi anexada pela Turquia sob o nome de Hatay. Sendo uma zona de transição entre populações árabes e turcas, a pressão da Alemanha nazi sobre a França deu a Atatürk em 1938 a oportunidade para forçar a sua anexação, em troca da neutralidade numa nova guerra na Europa.

2. Na Síria e no Líbano, tal como noutras partes de Médio Oriente, encontram-se múltiplos grupos religiosos, étnicos e linguísticos. Esta diversidade, em si mesma uma grande riqueza cultural, potencia, ao mesmo tempo, em certas circunstâncias políticas internas e/ou internacionais, lógicas de conflito e interferências de actores externos. A história do Império Otomano durante o século XIX até ao seu colapso na I Guerra Mundial mostra inequivocamente isso. Nessa altura, a Rússia assumia-se como protectora dos cristãos ortodoxos do Império Otomano (invocando o Tratado de Küçük Kaynarca de 1774), e a França das Igrejas orientais próximas do catolicismo e aceitando o primado do Papa (com base em acordos diplomáticos do século XVII). No século XIX, a disputa entre a França e Rússia pela primazia na protecção dos cristãos do Império Otomano foi uma das causas da guerra da Crimeia (1853-1856). Mais tarde, em 1860, no contexto de um conflito violento entre comunidades religiosas, o sultão otomano exerceu uma repressão sangrenta sobre os cristãos maronitas libaneses. A França enviou uma força expedicionária para intervir protegendo os maronitas. Em consequência, foi concedido um estatuto especial à região, surgindo a província autónoma do Monte Líbano. Estes acontecimentos estão na origem da separação política do Líbano da Síria, ocorrida durante o mandato francês da SdN, e que levou a um Estado libanês independente em 1945.

3. Ironicamente, hoje é observável um similar jogo de interferências externas. No passado, eram as grandes potências europeias que competiam pela influência e domínio sobre as populações e territórios do Império Otomano. A sua longa fase de declínio ficou genericamente conhecida como a questão do Oriente (1774-1924). Nessa época, eram as potências europeias que usavam a identidade e conexões religiosas dos vários ramos do Cristianismo para projectar o seu poder. Como vimos, os russos faziam-no em relação aos cristãos ortodoxos e os franceses face aos cristãos latinos / católicos. No caso da Síria actual vemos novas versões dessas velhas estratégias. Mas há actores novos. O Irão assume-se agora como potência protectora dos xiitas que são, também, um conveniente instrumento da sua política externa. No Líbano, a guerra civil (1975-1990) permitiu a afirmação do Hezbollah (o Partido de Deus), inspirado e apoiado pelo do Irão Ayatollah Khomeini, como milícia e força política dos xiitas libaneses. Hoje é um dos instrumentos iranianos na guerra da Síria. Por sua vez os alauitas, o grupo religioso de Bashar al-Assad, tradicionalmente visto como uma seita herética pelo Islão sunita dominante, aproximou-se do Islão xiita iraniano, por conveniência religiosa e política. Quanto às potências sunitas do Médio Oriente, especialmente Turquia e Arábia Saudita, estão em rota de colisão com estas alianças. Ambicionam, elas próprias, a hegemonia na região e o controlo da Síria. Os múltiplos grupos que lutam contra o governo de Bashar al-Assad, incluindo os islamistas-jihadistas da Frente Al-Nusra (próxima da Al-Qaeda) e até o Daesh (Estado Islâmico) são instrumentos das suas ambições. No caso da Turquia, enquanto herdeira do Império Otomano, há ainda, sob a liderança de Recep Tayyip Erdogan, uma vontade de regressar aos territórios perdidos, dos quais a Síria era parte. A incursão militar em território sírio para tomada de Afrin, a pretexto de uma operação contra os “terroristas” curdos das Unidades de Protecção Popular (YPG), é apenas a faceta mais visível dessa renovada ambição de poder.

4. Um outro caso é o da Rússia que reemergiu como actor de primeira grandeza no Médio Oriente. A sua intervenção militar na guerra da Síria foi decisiva para desequilibrar o rumo dos acontecimentos a favor de Bashar al-Assad. A actual política externa de Vladimir Putin, hábil e calculista, apoia-se em duas conexões do passado. Uma são as alianças do período soviético, bastante estreitas durante o governo de Hafez al-Assad e no período de maior influência do socialismo árabe do Partido Baath da Síria. A outra é um religar ao passado anterior à Revolução de Outubro de 1917, reavivando, de alguma forma, a tradição russa de presença na região como protectora dos cristãos ortodoxos. Quanto à França, apesar das ligações históricas à região, é um actor secundário como todas as potências europeias-ocidentais. Apesar de tudo, tenta ainda ter alguma presença e influência no conflito. O uso ocasional de armas químicas pelo regime de Bashar al-Assad e a barbárie dos islamistas-jihadistas do Daesh têm sido os motivos, convincentes ou convenientes, para acções militares esporádicas (mas fundamentalmente inconsequentes). Resta ainda o caso dos EUA. Ao contrário da Rússia e da França, não têm qualquer ligação histórica e política à região anterior à II Guerra Mundial. Mas para os EUA (tal como para a França), a intervenção fracassada na guerra do Líbano deveria ser um precedente a tirar ilações. Os atentados de 1983 em Beirute, com camiões armadilhados contra edifícios onde estavam aquartelados militares dos EUA e França, provocaram a morte de centenas de soldados, na maioria norte-americanos, num dos dias mais sangrentos da sua história militar.

5. Quando assistimos hoje aos horrores da guerra na Síria — o drama humanitário em Goutha oriental é apenas o episódio mais recente —, vem à memória a imensa tragédia humana que foi a guerra no Líbano (1975-1990). Lembra como uma conjugação de tensões endógenas a uma sociedade, com interferências de actores externos, pode levar ao pior. Para além da luta sectária libanesa (entre maronitas, sunitas, xiitas, drusos, etc.), assistiu-se — com graus, durações, formas e legitimidades variáveis —, à intervenção externa da Síria, de Israel, da França e dos EUA (e indirectamente do Irão). Mas o Líbano foi uma das vítimas do conflito israelo-palestiniano na região, devido ao afluxo em massa de refugiados palestinianos e de combatentes da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). A sua presença, desequilibrando os frágeis e tensos equilíbrios internos, foi o detonador da guerra em 1975. No caso da Síria, foram os acontecimentos da chamada “Primavera Árabe”, iniciados na Tunísia, que levaram a que as tensões pré-existentes na Síria, e a oposição a Bashar al-Assad, se confrontassem nas ruas levando à guerra generalizada a partir de meados de 2011. A vontade dos Estados sunitas (Turquia, Arábia Saudita e outros), apoiados por potências ocidentais, derrubarem Bashar al-Assad, intensificou o conflito. Para além destes aspectos, a tragédia da Síria é a de continuar a ter um governo opressivo, teoricamente inspirado nos ideais seculares do socialismo árabe, mas também uma oposição sem quaisquer valores democráticos credíveis, onde predominam grupos islamistas-jihadistas imbuídos de um autoritarismo religioso. Se a memória da longa guerra civil libanesa serve para alguma coisa, é para mostrar a futilidade destrutiva da guerra e como as divisões sectárias tornam uma sociedade refém de poderes externos.

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