Marcelo diz que há uma redescoberta da ferrovia

Presidente da República obrigou o governo a vir a um debate sobre a questão da bitola na ferrovia, mas não tomou partido.

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LUSA/ANTÓNIO COTRIM

Foi graças ao patrocínio de Marcelo Rebelo de Sousa que os promotores do manifesto contra a “ilha ferroviária” conseguiram levar mais de 200 pessoas para um debate  nesta quarta-feira à tarde na Ordem dos Engenheiros. Mais: a presença do Presidente obrigou inclusivamente o ministro do Planeamento e das Infraestruturas, Pedro Marques, a confirmar a sua participação em cima da hora e a sair apressadamente do debate quinzenal na Assembleia da República para estar na sessão de encerramento.

Só assim se conseguiu reunir interlocutores para uma discussão – por vezes foi acalorada – entre os que defendem que Portugal deverá mudar rapidamente a bitola (distância entre carris) das suas linhas e os que consideram que isso não é uma prioridade.

Já o Presidente da República preferiu não tomar partido e enfatizou este “exemplo de democracia participativa” que foi pôr as duas partes em conflito a debaterem a questão. “Trata-se de descobrir a ferrovia”, disse Marcelo, acrescentando que esta “foi vítima injusta da rodovia” porque durante décadas ficou à margem dos investimentos e dos fundos comunitários. “Há agora uma redescoberta da ferrovia que é virtuosa para a economia portuguesa”, disse.

Um debate inflamado

Com o auditório da Ordem dos Engenheiros repleto e mais duas salas cheias a assistirem ao debate por videoconferência, a sessão teve momentos de discussão inflamada. De um lado Miral Amaral, Luís Cabral da Silva, Henrique Neto, Mário Lopes e Mário Ribeiro. Do outro um solitário Carlos Fernandes, vice-presidente da Infraestruturas de Portugal, que receberia no fim da sessão um reforço de peso com um bem estruturado discurso de Pedro Marques que desmontou grande parte da argumentação dos críticos ao plano ferroviário do governo.

Os promotores da iniciativa têm um discurso fácil de compreender: havendo em Portugal e Espanha uma bitola diferente da do resto da Europa, e estando o país vizinho a construir uma nova rede em bitola europeia, então Portugal arrisca-se a ser uma “ilha ferroviária”. Deverá, por isso, começar já a mudar a bitola das suas linhas.

O contraditório disto é mais difícil de explicar, mas começa por duas evidências simples – não é verdade que a Espanha esteja a mudar já a sua bitola. E quando o fizer, num prazo que não está sequer calendarizado, essa operação será feita em conjunto com Portugal.

Pedro Marques diz que “nos corredores internacionais a introdução de travessa polivalente permitirá a migração para a bitola europeia, apenas se ambos os países assim o decidirem”. As travessas polivalentes dispõem de perfurações que possibilitam recolocar os carris mais próximos um do outro (a bitola europeia é 23 centímetros mais curta que a ibérica), através de uma operação relativamente simples, sem ter de se construir uma linha nova.

O ministro tornou ainda claro que as modernizações em curso do lado espanhol não contemplam “qualquer intervenção com vista à introdução de bitola europeia até à fronteira”. Nem na fronteira do Minho, nem na linha para Vilar Formoso e muito menos em Badajoz onde, sublinhou, os espanhóis “estão a construir linha nova em bitola ibérica com travessa polivalente”.

Luís Cabral da Silva, contudo, alertou para o perigo de a Espanha estar a construir plataformas logísticas em Salamanca e Badajoz, ficando Portugal isolado e condenado a levar os camiões com contentores até à fronteira e os espanhóis a levarem-nos depois de comboio para a Europa.

Henrique Neto lamentou “o Portugal pequenino e o Portugal das desculpas” que está dependente dos espanhóis e que precisa de saber levantar a voz na União Europeia para se fazer ouvir e cumprir os seus desígnios.

O empresário criticou o plano do governo para a ferrovia porque este insiste em modernizar uma “rede obsoleta” construída nos finais do séc. XIX e que não serve para o futuro. Em sintonia, Luís Cabral da Silva disse que “com remendos nas linhas não chegaremos lá nunca”.

Em resposta, Carlos Fernandes disse que todos os países têm ferrovias do séc. XIX, “mas nenhum abandonou a velha rede, pelo contrário modernizaram-na e alguns construíram linha de altas velocidade por cima”. No caso português “a missão é tornar a rede competitiva para transportar as mercadorias no mínimo tempo possível”, alegando que não vale a pena mudar já a bitola “porque temos soluções mais baratas”.

Os comboios de mercadorias que atravessam os Pirenéus têm de parar na fronteira onde os vagões são levantados para se mudarem os bogies (rodados) ou então os contentores são mudados de um vagão para outro. Trata-se de operações que demoram cerca de três horas e que, segundo os operadores ferroviários, não são significativas numa viagem de 60 horas – que é o tempo de percurso de um comboio de mercadorias entre Sines e Paris.

Contudo, só uma parte residual do tráfego ferroviário de mercadorias gerado em Portugal vai para a Europa além-Pirenéus.

Actualmente só 4% do transporte de mercadorias na Península Ibérica (onde não existe um problema de bitola) é transportado por caminho-de-ferro, o que mostra que haverá outros factores (que não a infraestrutura) que explicam uma tão baixa quota de mercado.

Carlos Fernandes argumentou que nem os próprios operadores portugueses – a Medway e a Takargo – estão interessados na mudança de bitola porque dizem que o grosso do negócio é entre Portugal e Espanha. Mas Henrique Neto respondeu que estes vivem em regime de monopólio e que a bitola lhes confere uma protecção contra a concorrência.

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