Humorista desesperado a viver em contramão

Conservador libertário, humorista, escolheu rir em vez de lutar. Aprendeu a escrever para as vozes dos outros. Agora escreve, para a sua voz, uma sátira aos tempos modernos. Pobres Diabos chega em Abril.

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42 anos. Escreve humor por encomenda, para as vozes dos outros. Liberta agora a sua: publica em Abril, na nova chancela da Cotovia, a Libelinha, Pobres Diabos Rui Gaudêncio

Um conservador, nascido em S. João da Madeira, filho de comunistas de Barrancos, Vítor Elias andou em bebé ao colo de Zeca Afonso, tem como figura de referência Margaret Thatcher, e na sátira — a sua profissão —, uma das especialidades é caricaturar Paulo Portas. É um homem de 42 anos que acredita ser impossível mudar o mundo e que, por isso, em vez de lutar, escolhe rir. “Sou um pessimista como todos os conservadores”, diz numa conversa sobre como chegou ao romance onde satiriza os tempos modernos.

O romance chama-se Pobres Diabos, título com eco para The Poor Devils, livro de 1986 do autor britânico Kingsley Amis, e que, no estilo, se poderia classificar como uma mistura de Evelyn Waugh, P. G. Wodehouse e o próprio Kinsley Amis de Lucky Jim (1955). São os autores de eleição de Vítor Elias, autor português que pensa em inglês e que, neste livro, descobriu que não pode fugir ao humor nem na escrita privada. É autor das Produções Fictícias (PF) desde 2004, depois de uma passagem de seis ou sete anos na publicidade. “Não levava aquilo a sério e quando não se leva a sério não se é muito bem visto. Por piada, fazia notícias falsas. Foi quando a Onion apareceu nos Estados Unidos. Escrevi umas notícias assim e mandei para as PF. Um dia o Nuno Artur ligou-me: ‘Queres vir trabalhar para ca?’ Uma semana depois estava lá.”

Escreve humor por encomenda, apurou a sátira, aprendeu a escrever para as vozes dos outros. No suplemento Inimigo Público, sobre futebol nas páginas de A Bola, ou para scketches de Herman José ou Bruno Nogueira. “Escrevo para vários actores e cada um tem a sua maneira de interpretar as coisas. Aprendi a não ser inflexível, não ser prima donna, tipo ‘ah é o meu humor, a minha visão’. Adapto-me a cada pessoa.” E faz ironia com os mais conservadores. “Sou o especialista em Paulo Portas. Quase tudo o que há nos últimos 15 anos no Inimigo Público sobre Paulo Portas sou eu que faço.”

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Rui Gaudencio

É um humor feito de algum desalento e de grande sentido de autocrítica. “Isso separa um conservador de alguém que não é: autocrítica. Gozar consigo próprio. Um humor à Sim, Senhor Ministro, não queremos mudar o mundo, não queremos fazer o Novo Homem. No fundo, é um tipo de desespero. Sabemos que o mundo vai mudar não como nós queremos, portanto mais vale rir.”

Sente-se a viver em contramão. Em S. João da Madeira, “terra onde impera o voto no CDS”, habitava uma casa de comunistas. De tal forma que chegou a aprender russo e o dicionário tinha a imagem de Micha, a mascote dos Jogos Olímpicos de Moscovo de 1980. Enquanto isso, ia à catequese e integrava-se nos hábitos da terra de onde saiu aos 17 anos para estudar literatura. Pensava que se inscrevera na Universidade de Lisboa, alugou um quarto ao pé e no primeiro dia de aulas descobriu que afinal tinha entrado na Faculdade de Ciências Socias e Humanas da Universidade Nova, “um lugar completamente dominado pela esquerda que me deu água pelas barbas. Só não deu mais porque quase nunca lá ia”.  

Pensa em inglês

Fala com um sotaque que parece alentejano. Depois de viver em Lisboa mudou-se para um monte, mas as saudades do mar e a escola dos filhos de seis e sete anos, levaram-no a Azeitão. “Estou a cinco minutos do mar”, salienta, depois de uma caminhada matinal pela zona. É em casa que trabalha, das nove as nove, em textos humorísticos que reflectem a sua relação com estes tempos. O seu tempo. Ri, e percebe-se que não se revê neles. “É o meu tempo, sim, mas é uma relação muito distante. Em relação à maior parte das pessoas da cultura, sou bastante conservador, politicamente. Sempre fui. Se fosse em Inglaterra votaria Torie [nome pelo qual é conhecido o Partido Conservador inglês]. Acho que as coisas são por uma razão; não gosto de coisas que mudem depressa.” Uma nova pergunta para perceber melhor quem é Elias. Votaria Trump na América? “Se não tivesse outra solução, sim. Entre Trump e Hillary Clinton, sem dúvida Trump, mas gostaria de um Rand Paul, mas nunca vai passar as primárias do Partido Republicano como se viu, foi arrasado”. É um conservador libertário, perfil em que se revê, adepto do conservadorismo pragmático de Thatcher que combateu os conservadores “mais a cheirar a mofo”. O dela era menos aristocrático. “Ela vinha do povo. Não é aquela coisa da caça à raposa. É um conservadorismo por razões políticas e não apenas por manter privilégios.”

A voz do romance é uma voz diferente da que exercita nas PF. É uma voz literária. “A maneira como satirizo a realidade no romance é a minha visão e é algo que nunca faço quando estou em trabalho. No Inimigo Público, quando estou a satirizar o CDS, o PSD ou o António Costa, nunca ponho a minha visão, ou seja, ponho um bocadinho, mas sempre tendo em conta que aquilo vai ser lido por alguém; tenho de ter em conta o perfil dos leitores. Não é a minha vontade. É um trabalho. Enquanto o meu livro é exactamente aquilo que penso e isso é libertador. Não estou preocupado com o que as pessoas vão pensar. Grande parte do IP passa pelas redes sociais e há uma reacção cinco minutos depois de escrever. No tipo de escrita como a do livro é completamente diferente e é disso que gosto; não estar a pensar no que vai pensar o leitor daí a cinco minutos, se vai insultar, se vai meter um like. É libertador.

Pobres Diabos fala de um professor num colégio em Oxford. Descende de famílias inglesas do Douro e, por um azar com os novos alunos do colégio, é despedido e vai ter que fingir que é uma espécie de Niall Ferguson, o historiador de Oxford. “Depois é ver como é que as pessoas se relacionam com ele”, acrescenta, dizendo que há uma personagem que a Fernanda [Mira Barros, editora da Cotovia] identificou como uma paródia ao Trump, mas que para mim não é. É um americano que tenta fazer com que a filha ganhe as eleições em Inglaterra. Acabará por se tornar quase a personagem principal.” Ou seja, Pobres Diabos é “um gozo a esta espécie de luta cultural que há entre a esquerda e a direita hoje em Inglaterra e nos Estados Unidos”, escrita por um português que pensa em inglês. “Penso primeiro em inglês e só depois é que penso em português. Não leio quase nada em português há 25 anos. Comecei a escrever o livro todo em inglês e já ia quase na página 100 quando percebi que tinha de ser em português. Ou, como disse a Fernanda quando começou a ler o livro, parecia tradução de um livro inglês. Tivemos de trabalhar a língua.”

Não é o primeiro romance de Vítor Elias, mas é quase. Há um que parece ter existido numa outra vida. Foi escrito na adolescência e publicado quando saiu da universidade. “Era aquela coisa neurasténica dos adolescentes. A história de uma pessoa que trabalhava numa agência funerária numa terra ao pé do mar com os seis dilemas pessoais. Nada a ver com o que sou hoje”. Chamava-se A Segunda Oportunidade [Quetzal] e conta que Marcelo Rebelo de Sousa falou dele nos seus serões televisivos de domingo, apresentando-o “como um dos melhores alunos da Universidade Nova” — ele nem sequer acabara o curso. “Foi uma fake news avant la letre”.

“Nessa altura estava mergulhado na literatura francesa, hoje sou anglófono”, conta. “Quando escrevia fora das PF queria fugir à sátira, ao humor, mas é a minha natureza, não dá para fugir. É assim que escrevo, é assim que gosto. Assim que assumi isso ficou muito mais fácil.” Com tanta leitura em inglês, identificou-se com a college novel, e logo depois com a vontade de satirizar os tempos modernos, questionar o politicamente correcto, tudo o que se está a passar nas universidades inglesas e americanas, com os estudos de género e os trigger warnings. “O ímpeto de Pobres Diabos é satirizar esta corrente do politicamente correcto que se está a viver no Ocidente”.  

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