O grande duelo constitucional: quem escolhe o presidente da Comissão? (1)

O Parlamento Europeu tem portanto três oportunidades de negação, isto é, de contrariar a escolha do Conselho Europeu.

1. Teve lugar em Bruxelas um Conselho Europeu informal, com farta matéria para discussão, tanto na frente do futuro institucional da União como no terreno do financiamento vindouro das suas políticas. As questões institucionais passam quase sempre mais desapercebidas e são mais difíceis de compreender pelo grande público (e, já agora, também mais árduas de explicar). Na frente constitucional, um dos pontos mais sublinhados pelos intervenientes foi o de que o Conselho Europeu, enquanto cume ou vértice institucional da UE, não abdicaria em caso algum do poder de designação do Presidente da Comissão Europeia (que expressamente o Tratado lhe confere). Não abdicaria desse poder a favor de outrem, a saber, do Parlamento Europeu, que, com uma leitura diversa dos Tratados, tem vindo a reclamar para si a prerrogativa de escolher o Presidente da Comissão. O assunto tem ficado conhecido pela formulação alemã de Spitzenkandidat, se se quiser, de “candidato principal”, de “candidato de topo”, de “cabeça de lista” ou, mais livremente, de “candidato ponta de lança”.  Eis uma matéria que merece análise, comentário e avaliação, mas precisa aqui de mais de um artigo. Ela consubstancia um problema constitucional clássico no quadro da separação de poderes, seja a horizontal (separação executivo-legislativo), seja a vertical (separação federação-estados federados). Toda a tensão constitucional que conhecemos nos regimes presidenciais, semipresidenciais e até parlamentares entre os chamados órgãos de soberania está vazada e é bem ilustrada por esta querela. E a fricção clássica entre os órgãos federais que representam os Estados federados e aqueles outros que representam a federação propriamente dita está aqui plasmada de modo intenso e inteiro.

 

2. Nem todos têm consciência (e alguns não querem, aliás, tê-la), mas a história do PE nas últimas décadas – à semelhança do que fez o vetusto parlamento britânico nos séculos XVII e XVIII – tem sido a de, à margem das normas, no limite da sua interpretação e às vezes até contra elas, regatear e conquistar poderes e poder. O poder do PE cresceu enormemente e não foi só por obra da mudança dos Tratados; foi ainda pela criação de praxes e de precedentes que alteraram a leitura das normas e mudaram a posição relativa das instituições entre si. São muitos os exemplos que podem ser dados. A isto se chama, na teoria da constituição, “evolução constitucional” ou até “mutação constitucional”, que grosseiramente corresponde a uma mudança de conteúdo ou de sentido das normas sem uma alteração formal do texto respectivo. Algo que é perfeitamente normal em qualquer realidade política, mas especialmente comum em entidades constitucionais não muito formalizadas (como são o Reino Unido ou a União Europeia, mais parecidos entre si do que a generalidade dos observadores soe suspeitar). A magna questão está posta agora em saber quem, depois do Tratado de Lisboa, dispõe do poder de escolher o Presidente da Comissão e esta é evidentemente uma matéria do cerne ou do núcleo mais duro do magma constitucional europeu.

 

3. Nos termos dos Tratados, o Presidente da Comissão é designado pelo Conselho Europeu, tendo em conta os resultados eleitorais e depois de um processo de consultas (fórmula quase de certeza inspirada na constituição portuguesa). Por sua vez, o nome apresentado pelo Conselho carece de uma aprovação no Parlamento e o colégio de comissários que vier a escolher terá mais tarde de ser sufragado no Parlamento. Esse colégio é escolhido em regime de articulação com os governos nacionais a quem compete a indicação individual do comissário de sua nacionalidade. Este voto colectivo final decorre depois de um processo individual de audições, que fez já cair vários dos nomes propostos (o italiano Butiglione em 2004, a búlgara Jeleva em 2009 e outros mais), justamente com a ameaça de voto reprovação do colégio inteiro, caso se insista num dos nomes contestados. Pelo caminho, aquando da Comissão Barroso II (2009-2014), o PE inovou uma vez mais e forçou mesmo a apresentação de um programa de “governo”, também ele sujeito a votação. Ou seja, depois da indicação pelo Conselho, o nome do Presidente tem de ser aprovado pelo PE, o conjunto do seu colégio também e o respectivo programa igualmente. Tal como o apóstolo Pedro na noite da prisão de Jesus, o PE tem portanto três oportunidades de negação, isto é, de contrariar a escolha do Conselho Europeu. Já agora, permita-se um remoque para os que enchem a boca com o défice de legitimidade democrática da União: poucos chefes de Governo, nos estados nacionais, são sujeitos a um escrutínio democrático tão intenso. Primeiro, o líder da Comissão é apontado pelo órgão em que estão os 28 chefes de executivo, todos com legitimidade democrática nacional. Depois, submete-se pessoalmente à aprovação da câmara europeia directamente eleita; seguindo-se mais dois votos: um, para a aprovar a integralidade da sua equipa e outro para sufragar o respectivo programa. Défice democrático? Onde?

 

4. Em 2009, e pela primeira vez, o PPE apresentou, nas eleições, um candidato a presidente da Comissão. Era Durão Barroso, o presidente em funções. O Conselho acabou a indicá-lo, o PE aprovou-o, mas ninguém viu aqui um precedente. Tudo foi muito discreto e tímido e, para além do mais, seguiu um curso natural e expectável (o candidato era o incumbente). Nas vésperas das eleições de 2014, o caso mudou de figura, porque uma série de partidos europeus – com o PPE, os socialistas e os liberais, à cabeça – decidiram apresentar formalmente um Spitzenkandidat, um candidato ao posto de Presidente da Comissão. Foram mais longe e alteraram os seus estatutos, para preverem um mecanismo formal de selecção interna do candidato. É justamente a propósito do processo de 2014 que hoje tudo se joga. Por isso – muito provavelmente com uma paragem de permeio por causa das eleições italianas– temos de voltar ao tema.

 

SIM. Dicionário de Termos Europeus. Apresentada a nova edição, com presença do chefe de Estado e de Rui Rio, eis um clássico, aberto e plural, de tradução do “europês” para português. Iniciativa do grupo europeu do PSD.

 

 

NÃO. Xi Jiping. A permissão de ir além de dois mandatos é um sinal fortíssimo de que a China não evoluirá para uma abertura democrática progressiva. Ao contrário do que fez no clima, um mau exemplo.  

 

 

 

  

 

 

 

 

 

 

 

 

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