Água nossa de cada dia

O Inverno termina em breve e pouco choveu. Quase não se fala em falta de água nem de medidas extraordinárias de poupança. O que é preciso para aprendermos a lição? Mais dois anos de seca ou ver o que se passa na televisão?

Foto
Luis Tosta/Unsplash

Hoje ouvi dizer, casualmente, que, por este andar, no ano que vem não teremos água. Quase não choveu este Inverno — e muito digo que mais valia chover do que estar frio. Peco por transformar um assunto grave numa queixa banal. Responderam-me que, se chovesse, eu diria o contrário. Não. Sei o quanto a chuva faz falta e o quanto é precisa para que haja água para regar os campos que nos trazem comida, para regar as nossas gargantas quando estão secas. Imagine-se o que seria viver sem água canalizada e com água racionada.

Na África do Sul, a região da Cidade do Cabo tem vindo a ser vítima de uma seca tão extrema que originou a imposição de restrições no gasto de água potável. Começaram por alertar para o problema, deram conselhos, pediram que a população compactuasse. Muitas pessoas ignoraram e continuaram a fazer as suas vidas normalmente com o mesmo gasto de água. A situação escalou de tal forma que artistas já estão a gravar músicas com exactamente dois minutos de duração — o tempo máximo que um duche pode durar — e está-se a aproveitar a água do dito e de cozinhar para a descarga da sanita, porque existe um limite de 50 litros de água por dia por pessoa. A venda de produtos de higiene alternativa disparou e a caça aos garrafões e demais depósitos de água, e alternativas, aumentaram de tal modo que a procura suplantou a oferta e é crime abusar do consumo.

Por muito que muitos não entendam a gravidade da situação e a urgência de acção, todos pagarão pelos pecados de quem não quis ouvir. A data tem vindo a ser alterada devido ao nível de cooperação. Agora, o Day Zero está marcado para 9 de Julho. A cidade irá fechar as torneiras para todos — excepto hospitais e escolas. Não estamos a falar de uma cidade pequena, num país subdesenvolvido, mas sim da segunda maior cidade do país. Encontra-se na iminência de uma catástrofe comparada ao 11 de Setembro e ainda assim os ricos têm piscinas cheias e campos vistosos de golfe, enquanto os pobres têm campos de cultivo secos e animais a morrer. 2018, planeta Terra.

A cidade chegou a este ponto de escassez do néctar da vida devido à pior seca alguma vez regista — e que dura desde 2015 — num século, ao aumento populacional e ao clima incerto. A presidente da câmara não entende como as pessoas mostraram desinteresse e, passivas, não seguiram os pedidos de poupança. Já não pode mais pedir que cooperem, terá de obrigar. Após o fecho das torneiras, cada cidadão terá direito a 25 litros de água por dia, o que prolongará a existência de água por três meses. Depois disso, ninguém sabe. Espera-se que chova no Inverno, coisa difícil de prever devido às alterações climáticas.

Decorria 2017 quando se notaram na região do Dão baixas nas quotas de água. Não tinha chovido muito no Inverno anterior e as margens do rio tinham aumentado. Dizia-se que no Inverno seguinte viria a chuva e tudo ficaria resolvido. Chegou Outubro e a chuva era feita de fogo. Apagavam num ponto e a uns metros acendia-se mais um foco. O vento parecia orquestrado para o inferno que se vivia. Houve quem perdesse a casa, houve quem perdesse a vida. É impossível passar nas zonas sem nos depararmos com locais queimados, quem cá vive já se habituou à horrífica paisagem e memórias. E na tragédia, como sempre, os bombeiros fizeram o que puderam, mas não são omnipresentes, muito menos omnipotentes.

Ouvi pessoas queixarem-se de haver camiões cisterna a recolher água aqui na zona para levar para outros sítios, como se a água pertencesse a quem por aqui vive. A água não tem fronteiras nem etiquetas com nomes, mas esquecem-se disso, mesmo quando ensinam as crianças a partilhar. Que soluções pretendiam? Deixar mais gente perecer?

O Inverno termina em breve e pouco choveu. Quase não se fala em falta de água nem de medidas extraordinárias de poupança. O que é preciso para aprendermos a lição? Mais dois anos de seca ou ver o que se passa na televisão?

Soará a mais um filme distópico para muitos. A distância emocional é maior do que a física. Se morrer à fome não mexe com muitos, por que mexeria quando se trata de sede? A Cidade do Cabo é a primeira e gostaria de acreditar que será a única e que tudo se resolverá depressa, mas temo que não. Tomemos o caso como exemplo a nível global e respeitemos mais a água e o seu valor para a vida. Ponhamos trancas na porta antes que roubem o resto da casa.

Se isto está a acontecer na África do Sul, preparada para a situação, inclusivamente por tal galardoada, o que acontecerá se a falta de água chegar ao eterno impreparado Portugal? Tome-se consciência, tome-se o caso em consideração, tomem-se duches mais curtos e medidas de prevenção. A água potável é preciosa, mesmo quando o presidente da Nestlé considera que não seja um direito fundamental.

Enquanto os cabelos sujos se transformam em motivo de honra e orgulho na Cidade do Cabo, há vista para o mar salgado; e chove torrencialmente em Joanesburgo.

Sugerir correcção
Comentar