Os moradores da Relvinha construíram as casas. Agora querem ajuda para uma sede

O bairro de Coimbra nasceu com o SAAL nos anos que seguiram o 25 de Abril. Uma iniciativa da Capital Nacional da Cultura, em 2003, voltou a mobilizar os moradores para criar uma sede que, 15 anos depois, continua em construção

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joana gonçalves
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“Na Relvinha, é sempre à lei do desenrasca”, comenta Jorge Vilas, depois de nos levar por uma visita à oficina que os moradores do Bairro da Relvinha, em Coimbra, querem transformar em sede e espaço recreativo. Aos 76 anos, o homem que foi viver para o bairro quando as condições eram muito diferentes procura assim resumir a história da sua construção, às mãos dos próprios moradores após a revolução de 1974.

Anos depois da luta por uma habitação digna, o projecto Relvinha.CBR_X, promovido em Coimbra pela Associação Cívica Pro Urbe durante a Capital Nacional da Cultura, em 2003, voltava a agitar o bairro onde hoje vivem cerca de 250 pessoas. Aí nasceu a ideia intervir num edifício que pudesse servir de sede da Cooperativa de Habitação Económica Semearrelvinhas, que comemora este mês 43 anos. Apesar de o projecto ter década e meia, falta apoio financeiro para o concretizar.

O que começou com dois workshops de arquitectura e cenografia dirigidos pelo arquitecto João Mendes Ribeiro e pelo encenador e dramaturgo Carlos J. Pessoa, acabou por sobreviver a 2003 e se transformar num projecto mais longevo. Jorge Vilas, presidente da cooperativa, recorda que “esta malta do CBR_X acabou por dinamizar outra vez o bairro. As pessoas já estavam um bocado adormecidas, conseguiram os seus objectivos e começaram a acomodar-se”.

O CBR_X acabou por ocupar uma antiga oficina de metalomecânica, que à data se encontrava devoluta, tendo nascido depois o projecto da sua transformação um espaço cultural e recreativo, explica ao PÚBLICO João Mendes Ribeiro. Daí resultou uma parceria entre a Universidade de Coimbra e a Câmara Municipal de Coimbra (CMC) para a execução do projecto, mas a obra não avançou de imediato. “ Houve dificuldade em avançar com a obra por questões de financiamento”, justifica. Depois de encerrado o programa da Capital Nacional da Cultura, em 2003, o projecto continuou sob a coordenação do arquitecto.

Só em 2009 a posse do edifício da rua José Afonso passou para a cooperativa, num processo de aquisição facilitado pela autarquia. O espaço, que se situa à margem da rua José Afonso e que divide o bairro entre primeira e a segunda fase de construção, tem vindo a ser gradualmente recuperado e adaptado.

A intervenção na oficina é um processo aberto. “Temos feito algumas alterações, não do ponto de vista conceptual, mas para tentar encontrar soluções” ajustadas à “possibilidade de execução”, descreve Mendes Ribeiro. Mas a participação de quem vive no bairro tem também o seu peso na adopção desta filosofia. “Foi sempre um processo em aberto, nunca foi inteiramente desenhado nos ateliers. Houve sempre muita conversa e troca de soluções e ideias neste processo”, menciona o arquitecto.

A Junta de Freguesia de Eiras e São Paulo de Frades tem apoiado, tem havido doações de material de particulares e empresas e os moradores têm feito jornadas de trabalho. Mas é preciso mais para que a recuperação avance. Vasco Pinto, um dos autores do CBR_X, explica que a compartimentação do espaço está feita, com casas de banho, cozinha e balcão.

Na cozinha funciona um lavatório provisório, mas ao lado, ainda encaixotado, um novo aguarda instalação, um exemplo do “desenrasca” que Jorge Vilas aponta. “Devagar vamos conseguindo”, acrescenta Ivone Barra que, com 45 anos, tem quase a mesma idade que o bairro.

Mas o tecto da oficina, por exemplo, exibe por dentro as telhas imediatamente acima das traves de madeira. “A cobertura devia ser levantada para que haja condições de conforto”, refere. Há ainda a necessidade de fazer os acabamentos, de levar a cabo os arranjos exteriores e de construir dois corpos de raiz que servirão de como biblioteca e espaço administrativo.

Excursões e festas angariaram algum dinheiro, mas não chegam. Assim, os moradores voltam a pedir o apoio da autarquia para concluir os trabalhos. Pelas contas de Vasco Pinto, foram já gastos cerca de 13 mil euros na reabilitação da oficina. Mas para fazer o que falta fazer é preciso dinheiro e meios. Mesmo que os trabalhos continuem a avançar no mesmo modelo que até aqui, serão precisos mais 80 mil euros, estima.

No último sábado, dia em que se comemorou o aniversário da Relvinha, o presidente da CMC, Manuel Machado, foi à oficina para assinalar a data e prometeu “contribuir para fazer o que falta fazer”. Tudo o que os moradores ouviram foi o “compromisso” do autarca que, com Jorge Vilas ao lado, anunciou a vontade em “requalificar o bairro”. No entanto não falou em medidas ou valores específicos.

Lixeira, barracas e autoconstrução

Antes de ali haver casas, havia barracas e antes de haver barracas era ali a lixeira da cidade. Ainda antes disso, aquela área foi uma pedreira. Mas a história da Relvinha tem origem a alguns quilómetros, onde é actualmente a entrada Norte de Coimbra. “A história do bairro começou com a destruição da antiga rua do Padrão”, para alargar a avenida Fernão de Magalhães, em 1954, recorda Jorge Vilas. Ainda hoje há quem na Relvinha tenha nascido na Baixa da cidade, na rua do Padrão. Vilas é um deles.

Na sequência das demolições, os habitantes espalharam-se pela cidade. Levaria mais três anos até que a autarquia construisse 28 barracas de madeira para alojar os ex-moradores da rua do Padrão. Nem todos foram habitar as barracas, conta, mas recuperava-se um espírito de comunidade.

Da década de 1950 até aos últimos anos do regime, o bairro, que não tinha electricidade nem água canalizada, cresceu. As famílias alargaram-se e, com isso, nasceu a necessidade de alargar também as barracas e fazer extensões. “Não havia educação sexual, eram famílias numerosas. No meu caso, tive sete filhos”, exemplifica Vilas. “Isto acabou por ficar um gueto”.

Não havendo água canalizada, existia ao pé da sua casa o fontanário do bairro. “Era ali o muro das lamentações, os amores e os desamores e eu estava ali a ouvir”, recorda. “Ele era o jornal do bairro”, graceja ao lado João Fernandes, um dos moradores da Relvinha.

A reivindicação por melhores condições de vida começou antes da revolução. “Isto era muito difícil. O bairro era muito pobre”, desabafa quase no final da conversa. “Quando se deu o 25 de Abril já tínhamos aqui pessoas consciencializadas politicamente, preparadas para o embate”. Um autocolante da Associação de Moradores da Relvinha da década de 1970 ilustra bem o principio segundo o qual nasceu o bairro: “A casa do proletário não pode sair do seu salário”, lê-se.

Quando foi criado o Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL), os moradores organizaram-se. Na Relvinha, o serviço criado pelo então secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, Nuno Portas, deu apoio técnico e financeiro aos moradores, conta o sociólogo João Baía no livro SAAL e Autoconstrução em Coimbra, Memórias dos moradores do Bairros da Relvinha 1954-1976, (edição 100Luz, 2012).

A Relvinha fez parte de um movimento mais alargado no país, ao longo do PREC, durante o qual nasceram comissões de moradores, de trabalhadores, cooperativas de consumo e de habitação económica. Em 1974, cerca de 2 milhões de portugueses viviam em barracas, tugúrios ou em refúgios, cita João Baía.

Na primeira fase foram erguidas 34 moradias unifamiliares com o traço do arquitecto Carlos Almeida. De rés-do-chão e primeiro andar, as casas foram construídas pelos próprios moradores, ajudados por grupos de estudantes e estrangeiros que vieram para ajudar através do Movimento dos Companheiros Construtores.

Mas o processo foi gradual, uma vez que se tinha que construir casa a casa, à medida que se ia desmantelando cada barraca, conta o presidente da cooperativa. “ Foi um bocado à semelhança dos Índios da Meia Praia. Só não pudemos mudar as barracas”. As primeiras casas foram inauguradas em Junho de 1976. Nesta fase, afirma Jorge Vilas, o SAAL apoiou o bairro com cerca de 60 contos da moeda antiga por casa.

A segunda fase de construção foi desenha pelo arquitecto Rogério Alvarez e arrancou mais tarde. Os dois blocos de habitação colectiva ficaram prontos em 1982 e envolveram “mais dinheiro e mais meios humanos”, explica Jorge Vilas. Com os prédios de quatro andares nasceram 52 fogos de habitação, mas as pessoas que os foram ocupar já não vieram da antiga rua do Padrão, mas de outros pontos de Coimbra.

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