Cannabis, factos e fantasias

Afastado o uso “terapêutico”, é no uso “recreativo” desta droga que se deve centrar o debate.

De vários quadrantes tem surgido o insistente pedido de um debate sobre o uso da cannabis, e eu associo-me convictamente a essa solicitação. Mas para que um debate, com apresentação de pontos de vista divergentes, eventualmente opostos, se possa justificar, é indispensável que haja correcta definição dos termos em que se baseia a argumentação, de modo a que a discussão possa ser racional e frutífera.

Ora, nos aportes entretanto oferecidos à discussão pública é por demais manifesto existirem imprecisões e mesmo erros, refutáveis no plano puramente científico e que será necessário corrigir a fim de conseguir uma plataforma de factos, a partir dos quais se possa desenvolver o debate. Parece tanto mais importante este passo prévio, quanto é certo que a terminologia adoptada é por vezes confusa e indutora, no público em geral, de noções e conceitos não fundamentados. Devemos, pois, partir de alguns factos inequívocos, cientificamente comprovados e aqui sumariamente apresentados:

1. A Cannabis sativa é a planta do cânhamo, também conhecida como marijuana, erva, etc. Para além de fornecer uma fibra usada na confecção de cordas e cabos, contém numerosos princípios activos, alguns dos quais exercem efeitos marcados sobre o psiquismo. O tetra-hidro-cannabinol é o mais potente destes princípios, designados como canabinoides, pelo que a potência de partes da planta (folhas, inflorescências) ou dos seus extractos (haxixe, skunk) se exprime pela percentagem deste canabinoide que apresentam.

2. A cannabis pode provocar habituação e toxicodependência, dependendo do grau de probabilidade da potência do produto usado (quanto mais elevada maior o risco), da quantidade consumida e das características do consumo (intenso ou escasso, regular ou ocasional, individual ou colectivo), para além das características psicológicas do consumidor.

3. Não existe nenhuma prova de que a cannabis exerça qualquer efeito terapêutico, ou seja, que sirva para tratar doenças ou reduzir ou suprimir sintomas desagradáveis. O que existe são dados clínicos, ainda pouco consistentes embora, de que alguns canabinoides ou suas combinações possam ter eficácia no tratamento de rigidez muscular, vómitos induzidos pela quimioterapia e situações dolorosas.

4. Como acontece com qualquer fármaco, os canabinoides têm efeitos secundários ou reacções adversas, entre as quais são especialmente preocupantes as registadas após o uso da cannabis na esfera psíquica: indiferença, desmotivação, incapacidade de concentração e de estudo, alucinações e estados semelhantes à esquizofrenia. Estas reacções graves estão sobretudo registadas em adolescentes e são atribuídas à interferência dos canabinoides na maturação cerebral, que só se completa pelos 20, 20 e poucos anos. Como o tabaco, a cannabis é carcinogénica (pulmões, bexiga).

5. O consumo de cannabis precede o da cocaína, heroína, anfetaminas, isto é, serve de porta de entrada, juntamente com o tabaco e o álcool, para a chamada escalada das drogas.

Se estas cinco proposições forem aceites como válidas (e têm de o ser, pelas provas científicas que as sustentam) podemos debater o uso chamado recreativo, ou seja, como droga, da cannabis; quanto ao pretenso uso “terapêutico” da cannabis, esse cai imediatamente por terra, por ser inexistente qualquer evidência que o justificasse.

De resto, como parece óbvio, e foi recentemente sublinhado pelo PCP, os medicamentos são aprovados, nos países evoluídos, pelos ministérios da Saúde, através de organismos seus especializados (entre nós, o Infarmed), dotados de meios técnicos e humanos (peritos) capazes de avaliarem o binómio eficácia-segurança que caracteriza cada fármaco. Acontece que em Portugal se encontra disponível para uso terapêutico um medicamento canabinoide e que outros se encontram em fase de avaliação, pelo que ainda mais redundante se torna a proposta a apresentar à Assembleia da República, que aliás só pode ser classificada como bizarra (os farmacêuticos como dealers legais, os médicos a prescreverem um produto de potência desconhecida, os doentes a fabricarem o seu “medicamento”, etc.). Bizarra a proposta, inadequado o fórum a que é dirigida, já que a Assembleia, com todo o respeito devido, é incompetente em matéria de terapêutica.

Afastado o uso “terapêutico” da cannabis, inexequível, permanece o uso “recreativo” desta droga; nesta área é que se deve centrar o debate, sereno e objectivo, com opiniões que valham pela solidez da sua fundamentação.

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