Povo, jovens e democracia na desordem mundial

As consequências da crise da ordem democrática podem tornar-se tão sérias no coração da democracia liberal como o foram na sua periferia.

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O mundo ocidental está perante várias ameaças geopolíticas. Mas, de todos os riscos, o maior parece estar no seu interior. Leia-se a seguinte frase: “Há fortes indicadores de que as consequências da desconsolidação democrática podem tornar-se tão sérias no coração da democracia liberal como o foram na sua periferia.” Os autores são dois politólogos, Roberto Stefan Foa, da Universidade de Melbourne, e Yascha Mounk, de Harvard, num artigo publicado no Journal of Democracy (Janeiro 2017).

Um jornalista italiano, Mattia Ferraresi, correspondente do Il Foglio em Nova Iorque, publicou em Novembro um livro sobre as raízes da crise do liberalismo político: Il secolo greve — Alle origine del nuovo disordine mondiale (Marsilio, 2017). Século greve pode traduzir-se por “século pesado” (no sentido de ambiente pesado). É um ensaio jornalístico. Dele me sirvo para transmitir algumas das suas perplexidades.

Nova Iorque é bom observatório. Tendo acompanhado a era Obama e a campanha de Trump nas primárias (La febbre di Trump. Un fenomeno americano, Marsilio, 2016), Ferraresi dá-nos um testemunho privilegiado. Dos vários temos que aborda, interessa-me a crise da democracia liberal, de que darei algumas notas soltas. Foa e Mounk, de cujas teses Ferraresi parte, formulam um tripla interrogação: “O grau de apoio popular da democracia como sistema de governo; o grau em que partidos ou movimentos anti-sistema são débeis ou inexistentes; o grau em que as regras democráticas são aceites.”

A “geração millennial”

Não vale a pena sumariar a multiplicação das chamadas “democracias iliberais”. O que Ferraresi sublinha é que não é simples encontrar nações democráticas que não estejam sob pressão de, pelo menos, um daqueles três aspectos. “Os cidadãos de muitas democracias teoricamente consolidadadas na América do Norte e na Europa Ocidental não são apenas críticos dos seus líderes políticos. Mais do que isso, tornaram-se também críticos, por vezes cínicos, do valor da democracia como sistema político, pouco confiantes sobre a possibilidade de poderem influenciar as políticas públicas, mais inclinados a exprimir apoio a alternativas autoritárias.”

Democracia e liberalismo — no sentido dos direitos e garantias individuais, da liberdade de expressão ou da separação de poderes — não se recobrem necessariamente. Assiste-se hoje a uma tendência de cisão do conceito de democracia liberal: entre democracia, enquanto expressão da vontade da maioria e aquilo a que chamanos “regras democráticas”. Que algo de mais democrático e liberal do que eleições livres que dão aos cidadãos a possibilidade de votarem contra os governantes? No entanto, Orbán ou Erdogan ganham eleições e violam as regras do Estado de direito, exactamente em nome da “vontade do povo”. Esta noção de democracia permite oprimir ou silenciar as minorias. É um traço comum de vários populismos.

Fenómeno inquietante, frisa Ferraresi, é a difusão desta “indiferença” entre os jovens, na Europa e na América, embora com culturas políticas distintas. Ainda há poucos dados sólidos sobre os millennials, os nascidos depois de 1980, mas há indicações preocupantes.

“Nas velhas gerações, a devoção pela democracia era fervorosa e difusa. Nos Estados Unidos, por exemplo, os nascidos entre as duas guerras mundiais consideram a governação democrática como um valor quase sagrado.” Para 72% deles, é o valor mais alto. “Mas a geração millenial é muito mais indiferente.” Apenas 30% dos jovens americanos afirmam que viver em democracia é um valor essencial. Esta percentagem é um pouco mais alta entre os jovens holandeses. Na Grã-Bretanha e na Nova Zelândia os valores são semelhantes. Pior é que, na mesma amostra americana (World Values Survey), 24% respondem que viver em democracia é “bad” ou "very bad”.

Ferraresi não é optimista. “Os jovens são os heróis que salvarão o liberalismo com os poderes conferidos pelo seu magnífico Erasmus ou os “fucking millennials” que o destruirão?” Entre 1900 e 1993, os jovens eram mais radicais do que os mais velhos na defesa da ordem liberal e da liberdade de expressão. “O cenário inverteu-se. Os jovens são a bacia natural dos movimentos anti-sistema.”

A ruptura de 1989

Após a grande cesura de 1989, as pessoas não tinham bússola e houve duas tentativas intelectuais para pensar a era que se abria: a de Francis Fukuyama, com O Fim da História, e a de Samuel Huntington, com o Choque de Civilizações.

Huntington previu conflitos entre civilizações irreconciliáveis e entre identidades culturais, mas não a emergência das pequenas “identidades tribais” que, combinadas com a globalização, está a corrrer os Estados-nações. Frisa o analista italiano Roberto Menotti, numa crítica do livro de Ferraresi, que “as identidades culturais são essenciais para compreender a desordem global, mas não no sentido macroscópico desenhado por Huntington e sim na ‘forma micro’, como na Catalunha ou na Escócia e, com extrema brutalidade, na Síria, na Birmânia ou na Nigéria”.

Fukuyama teve uma boa intuição, mas enganou-se num “pormenor”: anunciou o fim do mundo “não liberal”, mas o que morreu foi o mundo “não capitalista”. Todas as atenções estavam focadas na emergência do “momento unipolar” dos Estados Unidos após o desmoronamento da União Soviética. Ora, a transição da China para o capitalismo vai ser o fenómeno marcante da nova era e o que virá a ter maiores consequências geopolíticas. O que hoje está em crise é exactamente o liberalismo político.

“O dogma da equação entre democracia e prosperidade foi posto em causa. (...) O economista turco Dani Rodrik concluiu que, quanto ao desenvolvimento económico, os governos democráticos não funcionam nem melhor nem pior do que as ditaduras.”

O que ocupa Ferraresi é “o liberalismo enquanto sistema organizativo e de valores”. E a actual debilidade do liberalismo corresponde a uma crise de excessivas expectativas e desilusões. O liberalismo, sobretudo na sua versão americana, está indissoluvelmente ligado à ideia de progresso técnico e social, relação que parece hoje ameaçada.

Anota Menotti: “O liberalismo corre o risco de, pela sua própria natureza, de uma deriva para um relativismo ético e das opiniões que pode esvaziar totalmente os valores e instituições democráticas, em particular no contexto de uma globalização rápida como a das últimas décadas.”

E conclui: “Tal como Mattia Ferraresi, devemos habituar-nos a raciocinar com ordem sobre a própria desordem.”

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