Altos Tatras: Um dia na vida de um sherpa

Na Eslováquia, país tão ignorado pelos turistas, os Altos Tatras, a mais alta cadeia montanhosa dos Cárpatos, acolhem ainda umas dezenas de homens capazes de carregar às costas uns cem quilos com bens de que necessitam os refúgios mais remotos. De olhos postos no solo, não têm tempo para apreciar um cenário tão gracioso. É pena.

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- Uma feliz coincidência.

Viktor Beránek tinha apenas sete anos quando, juntamente com os pais, se mudou de uma pequena vila na actual República Checa (na altura Checoslováquia) para Visoké Tatry, os Altos Tatras, a mais alta cadeia montanhosa dos Cárpatos, correndo ao longo de quase 80 quilómetros de comprimento e com uma largura que não chega aos 30.

Os picos, visíveis a uma distância considerável, revelam-se majestosos, como uma força da natureza, intransponíveis ao longo das suas vertentes. Não para Viktor Beránek.

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Como é natural, este homem que caminha apressadamente para os 70 não teve qualquer peso na decisão dos pais mas nem sequer podia imaginar, nesse tempo tão distante, como viria a mostrar-se grato pela mudança. Viktor Beránek frequentou a escola mas, mal completou os 18 anos de idade, foi a vez dele de tomar decisões — era seu desejo dar um amplexo mais forte a estas montanhas que o abraçavam desde menino. Por isso, a despeito de ser obrigado a ir para a secundária em Kežmarok, apenas o fazia depois de terminado o trabalho nas cottages.

- Já tinha uma ligação muito forte às montanhas, sentia-me preso àquela liberdade que me proporcionavam no dia-a-dia, à dureza e à frescura. 

Viktor Beránek tornou-se sherpa num território agreste, enfrentando os humores de uma natureza que nem sempre é dócil para com os humanos. Toda aquela paisagem magnificente, tão dada à contemplação, ajudou o jovem a formar o seu carácter, a interrogar-se por vezes.

- Aceito que as pessoas tenham alguma dificuldade em compreender o que leva um sherpa a caminhar durante horas, com uma grande carga às costas, vencendo montanhas pelo meio da tempestade, da neve, do vento, da chuva, com tantos perigos à espreita. Mas nenhuma dessas pessoas será capaz de perceber, por outro lado, o prazer, o sentimento de satisfação e de paz que nos preenche mal se chega ao topo.

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As montanhas são a vida de Viktor Beránek, ele não se consegue imaginar a viver numa cidade, em Bratislava ou em Kosice, a atravessar uma rua, a conviver com o stress diário, pelo meio de uma multidão. Viktor Beránek aprecia o silêncio, gosta que o seu cérebro percorra as avenidas da memória e não deixa de sorrir quando recorda os seus primeiros dias, quando optou por ser um  sherpa nos Tatras.

- Ainda tenho bem presente essa imagem da minha juventude e da qual não me envergonho. Pelo contrário, hoje sinto que serviu de estímulo e que me ajudou a ser mais determinado. Era o meu primeiro dia de trabalho como sherpa e recordo-me de ter percorrido 50 metros e de pensar ‘Meu Deus, isto é muito mais difícil do que eu supunha.’ Foi então que percebi que estava a ser estúpido e que necessitava de muita força, de utilizar a mente para ir buscar essa energia positiva.

Nesse dia, há muitos anos, Viktor Beránek carregava 48 quilos às costas, montanha acima, para uma cottage, onde haveria de chegar ao fim de quatro horas de uma dura caminhada. Só de imaginar, já me sinto cansado e o jovem sherpa, moldado pela persistência como se fosse o resultado de um trabalho de um oleiro, estaria longe de pensar, naquela hora tão banhada de incertezas, que uns anos mais tarde seria considerado o rei das montanhas.

Viktor Beránek nunca se esqueceu de levar com ele, nessas subidas tantas vezes penosas, chá e alguma comida para recuperar as forças quando as pernas pareciam fraquejar. A carga aumentava à medida que os anos iam passando, chegava aos 70 e aos 80 quilos, até atingir os 120, um peso que transformou Viktor Beránek no mais respeitado sherpa destes picos tantas vezes vestidos de branco.

Tradição e ráli

Também a idade pesa e Viktor Beránek, um ícone dos Tatras, não teve dificuldade em perceber quando o corpo lhe pedia mais descanso. Hoje vive a sua vida mais tranquila, no meio de um quadro que lhe permite mergulhar num silêncio íntimo, gerindo uma cottage situada a 2250 metros acima do nível das águas do mar, com uma panorâmica que prende todos os olhares. A coragem, o ânimo e a tenacidade com que sempre enfrentou o trabalho de sherpa ao longo de mais de quatro décadas também encontraram eco quando, por mais do que uma vez, tudo se desmoronou à sua volta, subjugado pela força da natureza.

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A cottage, Chata pod Rysmi, mesmo sob o pico Rysy, foi destruída em 1947, duas vezes em 1955, novamente em 1965, outra em 1982 e, finalmente, em Fevereiro de 2000, após uma avalancha que destruiu cerca de 80%  da construção que por sorte, nesse dia, se encontrava vazia. Pela primeira vez, Viktor Beránek foi obrigado a recorrer a um helicóptero para transportar os materiais mais pesados necessários para restaurar a Chata pod Rysmi, cujos trabalhos foram suportados, em parte, por donativos de turistas italianos e alemães (o seguro não pagava as despesas todas). Mas, à excepção das vigas de cimento que pesavam centenas de quilos, impossíveis de transportar às costas, tudo o resto, como sacos de areia ou gravilha, por exemplo, foi carregado desde Popradské Pleso por sherpas e por voluntários que se ofereceram para participar nas obras de restauro.

Para Viktor Beránek, o recurso aos meios aéreos, helicópteros ou teleféricos, não é compatível com a natureza que o rodeia, com a tradição, com o estilo de vida alpino.

- Os helicópteros são barulhentos e assustam as camurças e as marmotas. É importante preservar a natureza e é triste verificar o declínio do número de camurças, uma situação provocada pelos caçadores furtivos, especialmente no lado polaco.

Em contraste, as famílias de lobos, de ursos e de linces têm vindo a aumentar, pelo que a camurça (um terço daquelas que existiam há 20 anos) está para a fauna como os sherpas, pagos por quilo transportado, estão para as montanhas — em vias de desaparecimento. Viktor Beránek recorreu a seis sherpas ao longo de mais de 40 anos para abastecer a sua cottage mas sabe tão bem como o resto da população que esse trabalho, fiel a uma tradição e verdadeira imagem de marca dos Altos Tatras, pode ter os seus dias contados.

- Os sherpas vão desaparecer porque as novas tecnologias não tardarão a substituí-los. Por outro lado, os mais jovens já não se sentem tão entusiasmados em abraçar aquilo que eu considero ser mais do que uma profissão.

Viktor Beránek olha com nostalgia um passado de tão boas memórias, muito superior ao peso das tristezas provocadas pelas quedas de neve que reduziram a quase nada a cottage situada nestas montanhas também conhecidas por Alpes em miniatura. Ele sabe que o fim se aproxima mas, sem qualquer vaidade, sente que fez tudo para perpetuar um modo de vida, para manter vivo um quadro tão intimamente ligado a estas paisagens para muitos inacessíveis. Foi com essa ideia em mente e, ao mesmo tempo, para dar a conhecer ao mundo o trabalho dos sherpas que Viktor Beránek sugeriu, já em 1984, a criação de um ráli para ver qual dos sherpas era o mais rápido. O evento, com lugar marcado todos os anos pela Primavera, rapidamente ganhou popularidade (mais de uma centena de participantes em algumas edições), atraindo jovens de outras nacionalidades — homens e mulheres, aqueles carregando 60 quilos e estas 20, montanha acima. No ano passado, o vencedor foi Ratislav Goriscak, percorrendo com cem quilos às costas os dois quilómetros e meio em pouco menos de 37 minutos, ao longo de um trilho que exige mais de uma hora a um turista sem qualquer carga.

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Viktor Beránek, autor de um livro sobre estes titãs (existe também um documentário interessante, Slovoda pod Nakladom, que significa liberdade sob o peso e é da autoria do realizador eslovaco Pavol Barabaš), venceu a competição — o mais rápido tem direito a uma medalha e a muitos copos de cerveja — em diferentes ocasiões. Mas para o rei das montanhas, para o filho dos Altos Tatras, a vitória mais desejada passa por manter bem acesa a chama de uma tradição cuja origem é desconhecida. As fotos mais antigas destes homens elevados a semideuses, aplaudidos e fotografados por turistas que se sentam no exterior dos seus confortáveis chalés, testemunhando a sua passagem, remontam ao início do século XX mas nada garante que estas montanhas não tenham visto sherpas muito antes.

Do que não há dúvidas é que, na época da Checoslováquia, competia aos militares abastecer os refúgios da montanha, um trabalho que era complementado com a vigilância das fronteiras com a Polónia. Nesse tempo, nos Tatras, também o tráfico de álcool ganhava expressão e ainda hoje se encontram lugares que de certa forma testemunham esse comércio ilícito — como a tel le Zbojnícka, literalmente o chalé dos bandidos, destruído por um incêndio em finais do século passado e mais tarde restaurado.

Um imenso jardim

Nuvens negras acumulam-se no céu recortado pelos flancos do monte Svist’ovy Stit e ao longo do vale de Velká Studená. Por agora, faça chuva, sol ou neve, ainda há alguns sherpas que estão dispostos a lutar contra as condições climatéricas para fazerem chegar ao cimo das montanhas que para eles não têm segredos uma grande parte dos bens de que necessita uma centena de habitantes, capazes de viver neste posto avançado dos Cárpatos sem electricidade, sem telefone, sem televisão. No total, não serão mais de 60 os portadores que gostam de se apelidar de sherpas, em referência à etnia nepalesa cujos membros, gozando de grande reputação, acompanham, carregados, os estrangeiros ao longo das montanhas agrestes dos Himalaias — com a diferença de que os sherpas dos Altos Tatras não servem os turistas mas apenas os refúgios.

Para eles, o dia começa bem cedo, cheio de preparativos a anteceder a terrível ascensão a essas montanhas visitadas anualmente por meio milhão de turistas. Mais do que o peso, é importante conseguir uma boa repartição da carga. Qualquer sherpa aprende bem cedo que um objecto, uma botija de gás ou uma palete de cerveja ou de água, mal posicionado pode provocar um desequilíbrio e ser fatal quando chega a hora de atacar a montanha escarpada, esses precipícios vertiginosos. Por vezes, antes de iniciarem a subida, já os termómetros marcam os 25 graus — e um sherpa também sabe que perde pelo menos um litro de água a transpirar. Há quem lhes pergunte por que não fazem, durante os meses de Verão e conhecendo como conhecem as montanhas, o percurso de noite. A esses, eles dedicam um sorriso que mais parece um certificado de ignorância. Transportando comida, seriam uma atracção para os lobos e os ursos, que durante o dia preferem deitar-se a dormir, à sombra.

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Ao longe, imponente, avista-se o pico Gerlach, o mais alto dos Tatras, culminando a 2655 metros.

Apesar desta convivência entre o homem e o animal, não há registo de incidentes — um sherpa não vive para os ursos ou contra eles, um sherpa vive com eles e com essa realidade tão estranha para o comum dos mortais, numa coexistência que requer prudência e pedagogia. E um sherpa sente a sua presença, mesmo que cumpra quase todo o trajecto de olhos postos no solo, ignorando um cenário tão gracioso que o envolve, um relevo formado na idade glaciar, tão generoso em lagos, em cascatas e em riachos.

Sempre que o calor aperta, um sherpa não hesita em refrescar-se nessas águas num momento de pausa (por vezes com temperaturas que não excedem os seis graus), uma espécie de incentivo para a etapa que se segue, a mais difícil de todas, caminhando ao lado desses muros nas rochas tão desaconselháveis a quem sofre de vertigens. A missão destes homens tornou-se ainda mais delicada em 2004, na sequência de uma tempestade de uma violência inusitada e classificada como “grande catástrofe nacional” por Mikulas Dzurinda, o primeiro-ministro nessa época, devastando cerca de 12 mil hectares do maciço.

Aproximadamente três milhões de metros cúbicos de madeira ficaram cobertos, provocando uma mudança radical na paisagem dos Tatras e deixando os sherpas ainda mais vulneráveis às intempéries que chegam por vezes sem anúncio prévio. O governo colocou em prática um plano para regenerar a floresta e as autoridades do parque nacional investiram fortemente numa campanha de replantação que aos poucos afastou da memória o horror do desastre e devolveu às montanhas a imagem que os sherpas têm delas — um imenso jardim, como enfatiza Stefan Backor, portador e antigo guarda do parque nacional.  

De Verão e de Inverno

Quando se chega ao Sherpa’s Caffe, em Starý Smokovec, no coração das montanhas Tatras, grande parte do mito de que são os polacos os carregadores ao longo das terras altas eslovacas, retirando identidade ao espaço que é divido geograficamente pelos dois vizinhos, Polónia e Eslováquia, dissipa-se.

Esse mito perde ainda mais força quando se caminha pelo humilde museu que se encontra abrigado no mesmo edifício, tão recheado das recordações desses sherpas, os últimos, verdadeiros, de uma Europa que parece transportada do Nepal.

Mas os Altos Tatras têm muito mais para oferecer, não apenas a imagem de um sherpa com a sua carga às costas. Partindo de Starý Smokovec (de transporte ou uma caminhada de cerca de uma hora), acede-se facilmente a Hrebienok, a 1280 metros de altitude, com uma vista soberba sobre o vale de Velká Studená e ponto de partida para alguns percursos de montanha bem sinalizados (com diferentes cores). Um deles conduz, ao fim de uma hora, a Obrovsky vodopad, as cascatas de Obrov, de onde, em apenas 30 minutos, se chega a Skalnaté pleso, um bonito lago de onde é possível descer (uma vez mais de transporte ou a pé) até Tatranská Lomnica — todo este percurso faz parte do trilho Tatranská Magistrála que percorre, ao longo de 65 quilómetros, as vertentes meridionais dos Altos Tatras.

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Se, no Inverno, as montanhas Tatras seduzem, entre a Primavera e o Verão, com os vales cobertos de verde, pelo meio de tanta quietude, o viandante sente-se transportado para uma existência ainda mais singular, mais disponível à contemplação, desperto por essa natureza que exulta de vida.

Durante o primeiro fim-de-semana de Julho, no sopé dos Altos Tatras, a cerca de 20 quilómetros para leste de Liptovsky Mikulas, acontece o mais antigo e mais magnificente dos festivais de música e dança tradicionais eslovacos, organizado desde 1953 e nos últimos tempos expondo-se num curioso teatro a céu aberto para onde acorrem, bem como para outros eventos, os habitantes locais, desejando viver, em pleno Verão, aquela atmosfera única.

A escassos minutos, independentemente da estação do ano, na parte mais baixa de Tatras, ao longo do vale Demanovdka, surge a Belianska, a gruta da liberdade, a única aberta ao público na região e aclamada como o lugar subterrâneo mais apetecível do país, com as suas escadas, as suas estalactites e as suas estalagmites, as suas diferentes formas, pelo meio de uma temperatura que raramente supera os sete graus.

Com a chegada do Verão, a água deslizando pelas rochas, Strbske zelo é como uma janela que se abre para um mundo verde, com alternativas para todos: permite passeios de três horas que desaguam em lagos de águas cristalinas, recortadas pelos cumes por vezes ainda nevados, respirando o ar curativo de Tatras; da mesma forma que possibilita uma caminhada tranquila à volta do lago montanhoso para quem não deseja iniciar uma escalada, aos primeiros raios do sol, até aos picos mais próximos do céu, os mais altos dos Cárpatos, os Tatry, como são conhecidos na Polónia e na Eslováquia, países que dividem a cordilheira — há tanto em comum entre os dois, como o Tatranský Národný Park, do lado eslovaco, ou o Tatrzanký Park Narodowy, na área ocupada pelo território polaco, fundados, respectivamente, entre 1949 e 1954 e reconhecidos como Biosferas da UNESCO em 1993.

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Strbske zelo é apenas o mais famoso lago glaciar nos Altos Tatras, um lugar que anima famílias e não só, com eventos desportivos ao longo do ano, um ponto de partida para uma caminhada que descobre um antigo cemitério, onde repousam as vítimas dos acidentes montanhosos, até que se chega a Popradske zelo, o lago de Poprad.

A Eslováquia surprende a todo o momento, ninguém espera encontrar uma oferta tão diversificada num país tão pequeno, com uma área que é pouco mais de metade de Portugal e com uma população que não excede os seis milhões.

É neste país tão ignorado que vivem os sherpas da Europa, subindo três vezes por semana (em alguns casos) com a sua carga para que um turista possa apreciar, ao fim de um dia de caminhadas, um vinho ou uma cerveja. Ou mesmo um pão.

Quem, daqui a uns anos, arriscará a sua vida, no meio da tempestade, para levar um pão até estas paisagens alpinas?

Nessa altura, muito provavelmente, todos estarão sentados à lareira, contando histórias de Viktor Baránek, o rei das montanhas que carregava 120 quilos, que tinha mais medo de atravessar uma rua em Bratislava do que subir aos céus por onde continuam a correr nuvens negras.

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