O Peru por caminhos pouco percorridos

Este país é muito mais do que Machu Picchu. Grande parte do tempo a pé, vamos à procura de outras cidadelas incas — de Huchuy Cosqo a Choque Quiraw, passando pelo último refúgio do inca Manco: Espíritu Pampa.

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Quem visita o Peru, normalmente, e com razão, quer ver Machu Picchu. Contudo, existem uma série de outras cidadelas inca que, igualmente, são dignas de uma visita. Entre elas Huchuy Cosqo, o pequeno Cuzco, Choque Quiraw, “redescoberta” em 2004, ou Espíritu Pampa, último refúgio do inca Manco.

Como a maioria delas se encontra acima dos 3000 metros é aconselhável aclimatar-se primeiro uns dias, antes de começar a descobri-las em trekking. E não há cidade melhor para isso do que Cusco, a antiga capital inca e centro do Tawantinsuyo, como eles baptizaram o seu império. Parte da preparação é feita com coca. Logo à chegada começamos a beber a primeira de múltiplas chávenas de chá de coca, e durante a primeira excursão mastigamos também as folhas, para evitar os efeitos de altura, como dores de cabeça, vómitos ou problemas cardíacos.

A folha da coca, enraizada há séculos na cultura andina, é sagrada. Ela utiliza-se em múltiplas cerimónias como dádiva aos espíritos das montanhas, os Apu, ou à mãe terra, a Pacha Mama, antes de empreender uma viagem. Mas serve também para consultar o futuro e como remédio contra a fome, a sede, a fadiga e os desgostos. Mastigando-a com um pouco de cal, estabiliza o ritmo cardíaco, contribui para tirar o mal da altura e renova as forças. Os habitantes dos Andes mastigam-na constantemente, formando uma bola no interior de uma bochecha e também a mastigamos nas caminhadas cansativas para minimizar os nossos esforços.

Durante cinco dias explorámos — aproveitando os transportes públicos — alguns dos sítios arqueológicos mais interessantes da região, limitando as marchas a alguns quilómetros. Assim visitamos a cidadela de Pisac, no vale sagrado do rio Urubamba; Raqki, com os restos do tempo dedicado a Viracocha, o criador do mundo; o vale de Queswa Chaca para ver uma das pontes mais extraordinárias e, por certo, única no mundo: a ponte inca, feita de cordas de “ichu”, a erva dos altiplanos andinos; ou ainda Tipón, um grande centro cerimonial dedicado à água. Pouco a pouco melhoramos o nosso físico para depois podermos marchar durante quase quinze dias pelas montanhas e os sítios remotos dos incas. No quarto dia, e com um nível bastante maior de glábulos vermelhos no sangue, vamos a Calca (2900 metros), uma pequena vila no vale do Urubamba, para fazermos um teste sério para as nossas caminhadas na montanha e subirmos para as ruínas quase despercebidas de Huchuy Cosqo (3500m) no outro lado do rio Urubamba e invisíveis desde o vale, onde no século XVI viveram 40.000 pessoas.

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Ponte sobre o vale de Queswa Chaca

Depois de duas horas ao longo da margem do rio, subimos uma estrada de terra batida e passadas três horas avistamos as primeiras casas de guarda do antigo complexo inca que, como uma escada com várias plataformas, é construída numa ladeira de montanhas que protegem, naturalmente, o seu flanco ocidental. O complexo é dominado por uma grande praça festiva e uma casa com 12 nichos, em trapézio, que provavelmente serviam para expor as múmias dos incas quando havia cerimónias maiores no lugar que nos permite uma visão sobre todo o vale e muitos picos de montanhas sagradas da região. As ruínas actualmente gozam de trabalhos de recuperação e restauração. No futuro próximo, deverão ser incluídas nos circuitos turísticos, já que a pressão sobre outros sítios é muito grande, mas de momento ainda são um lugar que convida a contemplar de forma pacífica a harmonia que existe entre natureza e cultura.

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Huchuy Cosqo

Uma hora mais tarde já descemos outra vez para o vale; desta vez por um caminho de cabras que, passando ao lado de barrancos vertiginosos, nos conduz a Lamay, onde, exaustos mas felizes, esperamos por um autocarro que nos leva a Cusco.

Paz absoluta

No dia seguinte, às cinco da manhã soa o nosso despertador e uma hora mais tarde já estamos num  autocarro da companhia Ambay em direcção a Sahuite e Cachora, onde começaremos um dos trekkings mais extraordinários que o Peru oferece. Depois de sairmos da cidade descemos e subimos por boas estradas asfaltadas, em verdadeiras serpentinas, uma e outra vez por diferentes faldas das cordilheiras dos Andes; depois aparece a grande planície de Tarawasi, perto de Limatambo, onde teve lugar uma das derradeiras batalhas campais entre os incas e as tropas espanholas antes de estas terem conquistado a capital de Tawantinsuyo. Logo surge o Salcantay (6271m), a montanha mais alta e sagrada da região, cujo pico brilha ao sol sobre os vales circundantes.

Por volta do meio-dia já estamos em Sahuite, famoso pela sua pedra sagrada que representa em miniatura a mitologia inca. Aqui deixamos o autocarro e, juntamente com uma família peruana que entretanto conhecemos na viagem, apanhamos um táxi para San Pedro de Cachora (2909m) sem antes negociarmos o preço. Assim, os últimos 20 quilómetros saem-nos cinco vezes mais caros do que os duzentos já percorridos desde Cusco, mas quem não tem atenção, paga as favas. Em Cachora, derradeira vila e última oportunidade para nos abastecermos de fruta e pão, iniciamos a caminhada que, passando por um pequeno bosque, nos leva em duas horas e meia primeiro a Capuliyoq (2941m), um sítio com um bar junto a um miradouro que permite uma vista espantosa sobre o vale estreito do rio Apurímac, que corre com fúria 1000m mais abaixo, e sobre os nevados Padrayoc (5584m) e Salcantay. Descansamos um pouco e descemos, em ziguezague, mais cerca de sete quilómetros. Chegamos primeiro à Chiquisca (1930m), um pequeno casario familiar e ecológico que oferece água às mulas dos arreiros e arroz branco e ovos fritos aos caminhantes, e, finalmente, depois de mais uma hora de um caminho cada vez mais íngreme e árido, ladeado por um bosque de árvores secos e cactos, chegamos à praia Rosalina (1800m), junto ao rio e ao acampamento de trabalhadores que nas imediações da velha ponte — destruída por um huaico, um brutal deslizamento de terras — estavam a construir uma ponte nova, único acesso a Choque Quirao, se não se contar com uma pequena plataforma  pendurada num cabo e segura por uma soga para apoiar os trabalhos.

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Ñusta Hispanica

Na madrugada seguinte, depois do registo obrigatório para ingressar na área de protecção cultural do Instituto Nacional de Cultura peruano, cruzamos o rio neste veículo. Felizmente somos empurrados por um homem forte e ágil, de forma que temos que puxar a corda apenas para ultrapassar os últimos 20 metros. Aqui iniciamos uma subida brutal que nos leva, durante as próximas quatro horas e meia, à Marampata (2918m), a 14 quilómetros de distância, passando a meio caminho pelo belo casario Santa Rosa, onde os locais oferecem um pequeno campismo, um bar e um terraço esplêndido para descansar. Refrescamo-nos, abastecemos de novo as garrafas de água e desfrutamos a paisagem do vale, antes de reatarmos a subida. Os últimos seis quilómetros tornam-se um pequeno sofrimento, mas, mesmo cinco meses depois de uma operação cardíaca, o caminho é viável. Contudo, ficamos admirados pela facilidade com a qual os locais sobem o mesmo caminho em metade do tempo.

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A cidadela de Pisac

Depois de ultrapassarmos os 1100 metros de diferença em altitude entre a praia e Marampata, acampamos neste casario, onde dona Francisca, uma cordial camponesa, nos prepara uma belíssima massa com atum. Com as forças restabelecidas, apreciamos melhor o esplêndido panorama das três montanhas sagradas, ou “Apu”, o Quitay, o Sorani e o Wiracochan (6246m) e a silhueta de Choque Quiraw que sobressai entre pequenas nuvens de nevoeiro que sobem do vale. O impacto é tão forte que nem nos damos conta de que, entretanto, ao lado da nossa tenda, foram elevadas mais três, de um jovem casal canadiano-porto-riquenho em lua-de-mel que estão num trekking organizado com os seus empregados, um guia, dois arreiros e um cozinheiro.

Depois de uma noite bem ventosa, acordamos num ambiente de paz absoluta e às nove já estamos à porta do complexo arqueológico onde Gilbert, o guarda, nos cobra os 38 soles (12 €) que os não nacionais devem pagar como entrada para Choque Quiraw, cujo nome significa, em quechua, “berço de ouro”.

Apesar de ter sido referenciada por diversos cronistas do século XVI e XVII, durante dois séculos entrou numa espécie de sono de Bela Adormecida, até que, em 1834, o conde francês Sartiges reencontrou a cidade, entretanto reconquistada pelo verde abundante da natureza. Contudo, só em 2004 começaram trabalhos de deflorestação, limpeza e escavação neste sítio, efectuadas por uma equipa franco-peruana, sob a tutela inicial do científico francês Patrice Lecoq e do Ministério de Comércio Exterior e Turismo Peruano dentro do projecto regional de Cusco “COPESCO”, que pretende dar a conhecer as ruínas ao mundo.

Ambiente divino

À nossa chegada, as encostas de Choque Quiraw não estavam só encobertas por neblinas matinais que subiam do rio; às vezes, algumas abertas permitiram ver parte da enorme superfície das dezenas, senão centenas, de socalcos, destinados, no passado, para o cultivo agrícola — já que é propícia a este, ou seja, virada para o nascer do sol e, particularmente, para o cultivo vertical. Os incas aproveitaram o desnível de trezentos metros e os diversos microclimas da vertente oriental para cultivarem nos 150 terraços diferentes plantas, como a batata, a coca, a quinoa ou o milho. Esta grande superfície oriental é interrompida apenas por algumas casas de blocos de pedra talhados de forma bastante fina e servida pelas águas de um pequeno rio que vem do nevado Yanacocha. 

Subindo um pouco mais, chegamos, finalmente, à praça central de Choque Quiraw, situada entre duas elevações, o Hanan ao norte e o Ushnu no sul. Talha fina com as típicas portas e janelas em trapézio e bem conservada estrutura para fixar os tectos da casa. Ao contrário de outras culturas de outros continentes, os incas não usavam a telha para cobrir as suas casas, mas utilizaram apenas a palha; facto surpreendente, já que os povos andinos foram excelentes ceramistas. No lado ocidental há uma casa comprida com 18 nichos em trapézio no seu interior, talvez destinados a colocar as múmias dos incas falecidos.

Por detrás do edifício está, a noroeste, a colina Hatun, ocupada com vários armazéns ou qolqas, e uma fonte, alimentada por um riacho que vem do nevado Yanacocha, cujas águas descem por canais estreitos até à praça central, e o kallanka, o seu templo de três portas e duas grandes janelas viradas para a praça central e que limita a mesma. Contudo, um portal à sua esquerda abre caminho a uma cerca onde mantinham lamas, e outra praça festiva, situada a sul no cimo duma grande colina chamada Ushnu (3060m). A praça é redonda e serviu à equipa franco-peruana como heliporto durante as escavações e limpezas de 2004 a 2006. Perto desta encontram-se as denominadas casas do sacerdote que, pela sua excelente vista sobre o vale, podem ter usadas também como pontos de vigilância.

Mas a parte mais curiosa e sensacional do complexo encontra-se na vertente ocidental. Em 20 paredes de suporte dos seus inúmeros terraços, só parcialmente limpos até ao momento, encontra-se um fenómeno único do mundo inca conhecido até à data: 24 representações embutidas/incrustadas de lamas brancos em pedra, nomeadamente uma de um pastor, bem como, já distanciada das outras e na parede superior da encosta, uma linha de pedra branca em ziguezague.

Mas qual é a razão destas representações? Os incas viram o lama apenas como um animal de carga e fonte de carne e lã, mas consideraram-no também um símbolo de fertilidade, um protector do homem, presente na Yacana, a alma fecundante do lama no rio celestial, ou mayu, e que para nós é a Via Láctea. Na cultura andina, pelo contrário, costumavam distinguir-se manchas escuras sobre o fundo claro da Via Láctea que eram  identificadas como silhuetas de animais que vieram ao rio ou ao mar beber a água que veio dos rios do Tawantinsuyo para que o mar não engolisse algum dia o homem.

Os incas acreditavam que as águas do Urubamba, que desaparecem nos bosques escuros do Amazonas, desembocavam no mar e que as suas águas eram bebidas por um lama celestial que, de noite, reaparecia no firmamento sobre o Salcantay. E, de facto, durante as noites claras de Inverno, a Via Láctea deixa-se observar facilmente sobre este Apu, a montanha sagrada que é o Salcantay. Para os incas, a sua nuvem incluía um lama com a sua cria, com olhos muito brilhantes, que corresponde às estrelas Alfa e Beta do Centauro, à frente de um zorro e de um homem, e seguindo um sapo, uma perdiz e uma serpente, que desaparecem durante a noite de Inverno no outro lado do Salcantay, a montanha dominante sobre o rio Apurímac e o vale sagrado, concedendo de novo ao homem a água para a agricultura e os seus ritos.

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Espíritu Pampa

Nos ritos e tradições de Huarochirí (1598), anotações de Thomás, escrivão do investigador de idolatrias incas, lê-se: “A mancha negra que chamamos Yacana, a alma dos lamas, caminha no meio do céu; nós, os homens, vêmo-la quando chega toda negra. Diz-se que a Yacana anda no meio de um rio verdadeiramente grande que vem pelo céu tornando-se cada vez mais negro. Tem dois olhos e um pescoço muito comprido.” (Taylor, G. Ritos y tradiciones de Huaorchirí, IFEA, Lima 1999: 373). Daí que não surpreenda que a água e outros fluídos, como especialmente o sangue do lama, tenham tido um papel fundamental nos ritos andinos da época.

Depois de observarmos esta maravilha do mundo andino a partir de uma pequena plataforma feita para o propósito, veio a parte mais difícil da visita: subir os degraus da escada ao lado dos socalcos, que são de tal forma inclinados que, ao olhar para trás, para o vale, fico quase com vertigens. Sinto-me exausto e com falta de ar, de maneira que me parece melhor subir de gatas, segurando-me sempre com as mãos nos degraus superiores.

O homem andino é pequeno e de estatura larga, mas tem uma habilidade e resistências extraordinárias. Sem eles não é possível sobreviver na alturas e as inclinações e as dimensões dos degraus mostram que os seus antepassados devem ter sido muito ágeis também.

Voltamos para a praça superior, que convida a contemplar a natureza. Apenas se ouvem pássaros, o rio no fundo do vale e o vento. É um ambiente divino, por agora, apenas perturbado por nós e quatro ou cinco turistas, mas no futuro próximo, com a construção de um teleférico, isto mudará e Choque Quiraw transformar-se-á numa atracção turística maior.

As melhores batatas do mundo

Depois de uma noite sob lua cheia e um forte pequeno-almoço, continuamos o nosso trekking durante quatro dias em direcção a Huancalle, no vale do Vilcabamba, e outros dois à última cidade de refúgio do inca Tupac Amaru antes de ser preso e condenado à morte pelo vice-rei espanhol Torre Tagle; circundando Choque Quiraw e descendo durante três horas em ziguezague por trechos de um antigo caminho inca, que às vezes exige um estômago forte, passando por vezes ao lado de barrancos, primeiro até as ruínas de Pincha Huniyoc (onde a água salta), limpas apenas em 2014. Noventa minutos mais tarde chegamos a Quebrada Victória (2000m) num clima subtropical.

O dia seguinte começa com uma subida brutal. Daqui temos uma vista fantástica do nevado Corihuayrachina, que alberga também outra cidade inca de grande importância, descoberta em 2001 por uma equipa da Universidade Nacional San António de Abad de Cuzco. Sua limpeza, em curso, é dirigida pelo inglês Johan Reinhard com apoio da National Geographic. Em vez de subir as ruínas inexploradas, continuamos o nosso caminho, damos a volta à montanha, subimos até a abra, ou seja a passagem San Juan (4200m), de onde temos uma vista impressionante dos nevados Choqetacarpo e Pumasillo. Depois de seis horas, quase sempre a subir, descemos ainda até o casario Yanama (3600m), onde, exaustos, comemos as melhores batatas do mundo na casa de um dos locais que nos alberga também.

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Cruzando o rio Apurímac

Depois de uma noite bem dormida, continuamos rumo ao nevado Choquetacarpo (5512m). No início passamos por uma densa vegetação subtropical, cinco horas mais tarde, no abra do nevado, a 4600m estamos rodeados por neve. Pouco depois chegamos a um bem conservado troço de caminho inca pelo qual seguimos descendo para o vale durante três horas até Punta Carretera. Estamos muito cansados, mas decidimos continuar até Huancacalle, onde chegamos ao pôr do sol. Foi o dia mais duro e longo da nossa caminhada até agora, mas tivemos sorte, encontrando uma cama na pensão, a única do lugar, do senhor Benjamin Cobo e que nos arranjou também um sítio onde comer na vizinhança, já que a vila não tinha restaurante. Caímos na cama e só acordamos no outro dia às dez da manhã. Sem dúvida exageramos no dia anterior.

Flora contra pedra

Felizmente, os sítios arqueológicos que queremos ver estão muito perto: Victos, a pequena fortaleza do inca Manco, com uma vasta vista sobre o vale Vilcabamba e a “Ñusta Hispanica”, o maior centro de observação celestial dos incas; damos um belo passeio à sede do inca rebelde contra Pizarro, e visitamos os Intihuantana, as enormes pedras lavradas para “amarrar o sol” que serviram para prever o ano agrícola. Duas horas depois estamos de novo na vila, abastecemo-nos na loja do lugar com latas de atum, milho tostado, favas secas, pão e chocolates e aproveitamos para descansar durante o resto do dia e tentamos convencer o senhor Benjamin a acompanhar-nos com uma mula a Espíritu Pampa ou a conseguir um arreiro para nós. Ele não só se nega, como nos aconselha a abdicar da caminhada, já que, por causa do terrorismo, ninguém o tinha feito há um ano. Por imprudência e teimosia, ignoramos o seu aviso. E às sete da manhã seguinte estávamos de novo a caminho. Minutos depois pára um carro ao nosso lado e o condutor oferece-se para nos levar por 6 soles (2,50€) até Pampaconas. Aproveitamos e encurtamos a nossa aventura por um dia.

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Os caminhos em ziguezague

Na sombra oriental da Cordilheira Vilcabamba continuamos ao longo do rio Concevidayoc, em direcção a Vista Alegre. Agora a vegetação torna-se cada vez mais abundante, subtropical e densa, mas já não é tão densa como em 1911, quando Bingham chegou ao lugar sem entender a sua importância, ou em 1964, quando Espíritu Pampa, último refúgio dos inca de Vilcabamba, foi redescoberto pelo arqueólogo norte-americano Gene Savoy.

Estamos cansados mas o impacto da cidade, ainda em grandes partes coberta pela vegetação, é alucinante, tanto pela luta dos elementos naturais — flora contra pedra — como pela dimensão do complexo criado pelo homem. Há árvores de mais de 30 metros de altura e centenas de anos de idade, muros cobertos de musgo ou de plantas, paredes que parecem entrar num lado do tronco de uma árvore e sair pelo outro, mas na realidade são engolidos. Orquídeas e outras plantas, o canto de pássaros e a temperatura amena encantam.

A área total da cidade, situada ao lado do rio Chontamayo, é de 30 a 40 quilómetros quadrados, e no século XVI deu lugar a cerca de 40.000 habitantes que, em parte, tinham fugido de Victos para resistir aos espanhóis. É provável que a cidade, que conta com centenas de edifícios, um grande Intihuantana e várias plataformas, tenha sido construída por Manco Inka, servindo, depois do seu assassinato pelos seguidores do conquistador Almargo, aos seus filhos — os Inca Sayri Tupac (1545-58), Titu Cusi Yupanqui (1558-71) e Tupac Amaru (1571-72) — e seus seguidores como último bastião contra os espanhóis.

Contudo, parece que os incas aproveitaram aqui um sítio que já serviu a outra cultura andina, os wari (séculos VI–XI), cujo centro civilizacional estava situado ao pé de Ayacucho, nos Andes Centrais. Em 2011, a pouca distância de Espíritu Pampa, foi encontrado o túmulo do senhor de Wari, nunca foram conotado com Ceja de Selva, a parte superior da selva tropical amazónica.

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O túmulo do senhor de Wari

Depois de contemplarmos os dois sítios e de falarmos com os únicos dois trabalhadores com a tarefa de lutar contra a natureza e manter as ruínas limpas, seguimos o nosso caminho até ao casario de Chontobamba. Por sorte encontramos David, um taxista que veio trazer passageiros desde Yuveni, a última aldeia do vale que é servido por transportes públicos e um “hotel”. Estamos tão cansados e felizes que nem nos importamos com o preço da viagem.

Apercebemo-nos disso quando, na praça da aldeia, somos envolvidos por dois militares numa conversa que se torna interrogatório e deixa entrever que se suspeita que qualquer pessoa que anda por aqueles caminhos na província de La Convención à partida é suspeita de cooperar com o terrorismo, financiado pelo narcotráfico. Como os direitos cívicos estão suspensos naquela província, de facto fizemos mal em não seguir o conselho de Benjamin. Felizmente, os militares acreditam que realmente somos simples turistas. Mas a situação é séria. O quartel da pequena aldeia alberga centenas de soldados e é protegido por sacos de areia.

Depois deste susto, no dia seguinte deixamos Yuveni de autocarro via Kiteni, Quillabamba, Ollantaytambo, Choquecancha, Lares, Moray e regressamos a Cusco.

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