A liberdade como valor de troca

Como qualificar uma vida toda ela dependente do que a destrói?

A liberdade também se compra. E a verdade. E se vendem. Não será assim? “Import exportam-se” em pacote, como fizeram e fazem da tal democracia que vende o mercado como a sua bandeira e diplomacia, sua constituição mais funda — dessa imposição violenta, fazer dos outros recursos e depois de supostamente livres, mercados, gerou violência, saque, ocupação e desordem, o estado do mundo. Estamos na sociedade do mercado omnipresente, diferente da sociedade do mercado não omnipresente, margens e restos de espaços de história atrelados ao ainda “progresso” que não pára de vir. Essa omnipresença diz-nos que a venalidade, comportamentos associados ao mecanismo dominante das relações de compra e venda que os humanos adoptam para serem winners, é generalizada, linfa fluente. Os comportamentos aferem-se pelo dinheiro-medida-padrão, os estatutos também: uma fortuna maior pode ser eleito presidente de um país por ser uma fortuna entre os das fortunas, quem tem mais dinheiro tem mais poder, o poder de fazer a campanha eleitoral que o mercado eleitoral mediático exige como a sua forma de fazer política na era do espectáculo como sociedade. Esse poder do dinheiro lê-se em tudo, já que é capilar a circulação. Não há célula mínima que escape, a comercialização de todas as esferas do espírito é uma febre constante. E também não existe forma de poder que não se afirme a partir da sua relação de acção e conversão em propriedade, rendimento, reprodução mais ou menos circular da riqueza, também como aspecto exterior — há uma indústria dos aspectos com todo o seu glamour invadente —, aparência que se possa ler poder, pertença de casta. Hoje é-se senhor dos media, por exemplo, uma forma de renda simbólica que multiplica mais que os pães, dinheiro visivo e visibilizado, acrescento de virtualização recorrente à presença virtual como capital simbólico, senhor de ecrã.

E depois há as teorias da distribuição que dizem que sim senhor, o dinheiro sim, é e deve ser idolatrado pois dele emana uma aura de virtudes — lá ao fundo o trabalho suado de gerações vai rezando — icónicas ligadas a uma democratização do sujeito-conta-bancária, luz que brilha ouro no olhar de cada consumidor-cartão-de-crédito. O mercado, maravilha de funcionamento, tão fluido, tão rápido, qual velocidade da luz. A sua funcionalidade deixa de se ver, acelerou de tal forma o movimento das coisas globais que a guerra especulativa, que funda outras guerras e negócios, como os das armas que geram a desordem necessária para a ordem existente, é hoje um verdadeiro game-global de poker constante de casino planetário, tudo segundo o princípio de que és investidor directo ou indirecto — o teu pequeno capital é propriedade dos grandes, de tal modo que podes ficar sem ele numa crise — se não fores banqueiro, ou sub-banqueiro, para-banqueiro, “jogador”, “contabilista dinâmico”, etc., pois aí és agente da omnipresença mercadófila, accionista das formas da omnipresença creditária, financeira, dominantes, és senhor ou tendes a sê-lo, terás o teu iate longe do ruído, andarás de helicóptero nos céus de São Paulo, não pisas o chão dos outros, os comuns, tens as tuas lojas privadas, pertences a uma corte condómina, és senhor feudal — bem, também podes ter a tua vivenda a solo, Mariani, como o Dr. Cavaco. És dominante como eras dominante quando a sociedade dependia de uma teologia dominante, mais ou menos assente em formas de terror de acção — sacrifícios, por exemplo — e eras sacerdote ou faraó, soba, imperador, rei, de casta entre castas.

Ora se a venalidade é a regra relacional e a liberdade um crédito, em que espaço andará a outra, a liberdade das identidades do diverso, a da vida como respiração da vida que não se compra, das relações que o dinheiro não investe, aquela que fala as línguas das expressões, a poesia, os ideais de beleza, as ideias, o amor, o silêncio entreolhar, a palavra dita sem preço, o apreço, o afecto real, as relações que o equivalente moeda não medeia, não mediatiza?

E como qualificar uma vida toda ela dependente do que a destrói?

Se há aqui um papel cultural esse só poderá ser o da heterodoxia perante esta doxa do dinheiro associada à venalidade relacional. Como muito antigamente acontecia, só pelos caminhos da heresia lá vamos. E terá de ser muito qualificada e, por assim dizer, tão convictamente herege que não seja em nenhuma circunstância objecto de compra, nem de porno-desejo viral.

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