Nova música em dose tripla na Gulbenkian

Celso Loureiro Chaves e Luís Pena partilharam com o PÚBLICO ideias sobre as obras que vão estrear esta sexta-feira em Lisboa e sobre a sua trajectória como compositores.

Fotogaleria
O compositor Celso Loureiro Chaves Maciel Goelzer
Fotogaleria
O compositor Luís Antunes Pena dr

Os programas da temporada da Fundação Gulbenkian dedicados em exclusivo à música contemporânea são cada vez mais raros, mas o concerto desta sexta-feira  à noite (às 21h), constitui uma excepção, proporcionando a apresentação de três obras compostas recentemente, duas delas em estreia mundial e outra em estreia em Portugal. Será possível assistir à primeira audição de Off-balance, uma encomenda da Gulbenkian ao compositor português, residente na Alemanha, Luís Antunes Pena (n. 1973), e conhecer a obra Museu das Coisas Inúteis, do brasileiro Celso Loureiro Chaves (n. 1950), na sequência da parceria iniciada em 2015 entre a Gulbenkian e a Orquestra Sinfónica do Estado de São Paulo (OSESP).

Este acordo prevê a encomenda de obras a compositores portugueses e brasileiros, com estreias alternadas nas duas cidades. A segunda parte será preenchida com Became Ocean, do norte-americano John Luther Adams (n. 1953), composição que valeu ao compositor o Pulitzer Prize for Music em 2014. O título remete para uma frase de John Cage que Adams explica deste modo: “A vida na terra emergiu do mar. À medida que o gelo polar se derrete e o nível do mar sobe, nós humanos enfrentamos a perspectiva de, literalmente, nos tornarmos oceano".

A interpretação estará a cargo da Orquestra Gulbenkian, dirigida por Pedro Neves, contando com a colaboração do violinista brasileiro Luíz Filíp (membro da Filarmónica de Berlim) e dos percussionistas Rui Sul Gomes e Nuno Aroso.

Celso Chaves e o Museu das Coisas Inúteis

Quando começou a escrever a sua obra, Celso Chaves sabia já que esta se deveria chamar Museu das Coisas....  Só que não sabia que coisas. Foi a leitura do livro do filósofo italiano Nuccio Ordine, A utilidade do inútil, que lhe deu a chave para o título. “O livro diz que as coisas que não estão ligadas ao lucro imediato são as que realmente importam para a civilização, para as sociedades, mas ao mesmo tempo são consideradas inúteis”, contou ao PÚBLICO. “Comecei a pensar a peça em 2015 mas só terminei no final de 2017, precisamente na altura em que surgiu no Brasil uma discussão sobre museus e sobre o que pode e não pode ser mostrado, ou seja, sobre a censura nas artes. Então o nome Museu das Coisas Inúteis adquiriu uma contemporaneidade extraordinária. Um título quase abstracto tornou-se um título quase concreto.”

Sobre a peça, Celso Chaves diz que o violinista Luíz Filíp irá conduzir o ouvinte por cinco galerias de um museu imaginário. “Em todas elas, é ele quem convida os diferentes grupos instrumentais a tocarem”, explica. “A peça tem vários momentos de meditação, o que se pode tornar bastante desafiador para o ouvinte, mas é esse o jogo: um jogo entre movimentação e contemplação.” Do ponto de vista da linguagem, a obra “não é tonal, nem atonal”, utilizando o seu próprio sistema harmónico, um processo inerente à maior parte das suas composições. “Para cada uma das minhas peças, crio um sistema harmónico exclusivo, é o que sucede por exemplo na série A Estética do Frio”.

Museu das Coisas Inúteis presta também homenagem a Lisboa, pois foi enquanto passava no Terreiro do Paço que o compositor teve a percepção de que a peça estava terminada, e a três cidades latino-americanas: Porto Alegre, Manaus e Montevideu. Em relação a uma possível identidade musical brasileira, Celso Chaves afirma que “não há nada na obra que possamos identificar com aquele Brasil sinfónico, colorido, de Villa-Lobos ou Guarnieri” ou de outros compositores dessa geração. “A minha música é brasileira porque sou brasileiro mas não sei se sou o que se espera da música brasileira.”

Natural de Porto Alegre, Celso Chaves começou a estudar piano aos 6 anos, tendo também uma carreira de pianista e professor. “Como compositor só a partir dos inícios da década de 1980 comecei a encontrar o meu caminho pessoal. A referência musical principal foi o meu professor de composição, Armando Albuquerque, de quem gravei um álbum com todas as peças para piano. Recordo sempre uma frase dele que me marcou muito: 'Quando não tenho mais nada a dizer eu páro'.”

Refere ainda que os seus “grandes modelos libertadores” foram “os minimalistas clássicos dos anos 1970”, ainda que não escreva música como a deles, uma vez que, quando começou a compor, a vanguarda ainda estava muito presente com as suas normas estritas. No que diz respeito à actualidade, observa com grande interesse a produção musical de Kaija Saariaho.”

Sobre a vida musical no Brasil, Celso Chaves lamenta que as oportunidades hoje sejam menos, mas assinala também aspectos positivos. “Mesmo com todas as dificuldades sociais e económicas tem sido possível ter obras estreadas e gravadas e há movimentos interessantes em determinadas orquestras, por exemplo em Porto Alegre, Belo Horizonte e São Paulo, as quais têm um plano regular de encomendas e estreias.” 

Os seus próximos projectos incluem um Concerto para Contrabaixo e uma peça de câmara no âmbito da série Estética do Frio.  “Venho de uma cidade, Porto Alegre, onde faz muito frio no Inverno. Daí a pergunta: será que este frio tão bizarro, fora da ideia tropical do Brasil, não terá a sua estética própria?”

Luís Pena: “a consciência da incerteza”

Intitulada Off-Balance, a peça de Luís Pena parte de uma palavra usada na dança para designar o ponto em que o corpo se desequilibra e perde o controlo sobre si próprio. Esta alusão surge na sequência de um percurso que contou já com várias colaborações com coreógrafos e bailarinos.

“Parti da ideia de off-balance sob diversos pontos de vista. Há um aspecto puramente musical, expresso na ideia de desiquilíbrio através do ritmo, a qual surge logo no início com o vibrafone e com os timbales”, conta Luís Pena. “A seguir a esta secção, a ideia de off-balance adquire uma interpretação política, no sentido em que sistemas estáveis como a democracia estão facilmente sujeitos a desiquilíbrios.” O compositor refere-se em concreto à declaração proferida por George W. Bush, em 2003, na qual acusa o Iraque de possuir armas de destruição maciça, um  texto que teve uma influência direta na composição desta obra. “Por exemplo, os instrumentos de percussão são usados como corpos ressonantes, sendo simultaneamente amplificadores e filtros de sons e palavras do texto de Bush”.

Acerca das possíveis relações entre a política e a criação musical, Luís Pena diz não estar “preocupado em fazer sociologia nem política.” No entanto, não vê  “os compositores como pessoas isoladas da sociedade. “Vejo como forma natural, a reflexão no próprio trabalho dos acontecimentos que nos influenciam e que nos perturbam, que mudam o rumo da nossa vida e de todas as pessoas. É importante que a música seja entendida também como forma de pensamento.”

Depois de um percurso formativo em Portugal, incluindo a Escola Superior de Música de Lisboa, e vários estágios e cursos em Portugal e no estrangeiro, Luís Pena mudou-se para a Alemanha em 1999 a fim de prosseguir os estudos. Pensava que ia ficar pouco tempo, mas começou a trabalhar e a receber encomendas e foi ficando até hoje. Essa experiência tem-lhe possibilitado o contacto com um meio musical muito activo. “O Portugal de 1999 e o de 2018 são bastante diferentes. Quando eu saí, existiam ainda festivais de música antiga e de música contemporânea, que entretanto desapareceram.  Mas não é o caso da Alemanha, onde existem muitos festivais dedicados à nova música.”

Dá como exemplo o prestigiado Donaueschingen Musiktage, onde apresentou uma obra em 2005.  “É um festival que reúne cerca de dez mil pessoas em três dias, com espectáculos sempre esgotados. Há uma energia em torno da procura do novo, da procura de algo que nos faz pensar de outra forma. Parece-me que em Portugal essa atitude tem desaparecido.”

Em relação à sua trajectória como compositor, Luís Pena considera que uma mudança importante se deu em 2008 quando começou a desenvolver uma ideia de composição à qual chamou “a consciência da incerteza” e que está relacionada com a forma de integrar o ruído no processo criativo. “É interessante porque ninguém sabe exactamente o que é o ruído. Costumo comparar o ruído à loucura na linha do primeiro livro de Michel Foucault, que nos conta como a loucura teve diferentes interpretações ao longo da história”, explica. “Interessou-me pensar na oposição clássica entre ruído e música. Se eu tentar comunicar música existe ruído, mas se eu tentar comunicar ruído, o que é a música?” Neste contexto surgiram algumas obras como é o caso Fragments of Noise and Blood.

Luís Pena ouve compulsivamente música de várias épocas e estilos, mas prefere não apontar referências concretas para não condicionar o ouvinte. No entanto refere figuras de outras áreas que o marcaram como o realizador David Cronenberg e Mircea Kantor, “um artista que não tem um modo de expressão único pois tanto pode fazer um vídeo como uma escultura com betão, uma fotografia ou uma performance...” Conta ainda que o influenciaram os textos de Pierre Bordieu, “embora seja difícil apreender tal referência no plano musical.”

Entre os seus próximos projectos encontra-se uma obra para contrabaixo solo para Florentin Ginot, um dos elementos do ensemble Musikfabrik e uma residência no Institute for Computer Music and Sound Technology da Universidade de Zurique.

Sugerir correcção
Comentar