Lucibela canta para se religar com o passado

Laço Umbilical é o primeiro álbum da voz mais encharcada na tradição cabo-verdiana surgida nos últimos anos. Sem ambições de modernidade, Lucibela canta fora do tempo.

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Foi o infortúnio a colocar Lucibela na rota certa. Ao longo da adolescência, a cabo-verdiana nem sequer se imaginara a trautear melodias que fossem além de acompanhar canções românticas – banda sonora para os fogachos de paixões que iam e vinham – ou outros arrebatamentos musicais que invadiam as rádios do país sob o efeito da popularidade das telenovelas brasileiras. Na altura, há 15/20 anos, a música local de cariz tradicional só em muito raras ocasiões conseguia furar essa hegemonia estrangeira e conquistava os favores radiofónicos que construíam os verdadeiros sucessos.

Uma das raras excepções foi Nutridinha, coladeira que conta a história de uma grávida adolescente sem medo de se expor e da condenação social, a que Cesária Évora emprestou a sua imbatível interpretação no álbum de 2001 São Vicente di Longe – em que, mesmo não sabendo crioulo, quase conseguíamos ver essa Nutridinha a menear a sua barriga redonda. Foi esse o primeiro tema do reportório tradicional que Lucibela arriscou cantar em público, acompanhada por músicos e com os pés assentes num palco. Os músicos eram, na verdade, professores da escola que então frequentava e o concerto era parte da actividade escolar. Foi o professor de informática, amador numa banda de música tradicional, a atirá-la para este destino imprevisto. Alguém que só conheceu quando retomou os estudos depois de interromper bruscamente o 11º ano – na sequência do falecimento da sua mãe.

“A partir daí”, conta Lucibela ao Ípsilon, “comecei a fazer noites com esse meu professor porque ele achou que eu tinha uma voz linda e talento. A princípio cantava três a cinco músicas, ganhava o meu dinheirinho – que fazia falta porque a minha mãe já não estava – e fui-me metendo nesse mundo. Fui pesquisando cada vez mais música tradicional, fui ouvindo, juntando um reportório maior, e continuei a cantar nos clubes náuticos, nos bares pequeninos do Mindelo.” Aos poucos, os bares foram crescendo, a voz de Lucibela abrindo, e foi-se apresentando uma e outra vez nos principais restaurantes e hotéis – o topo do circuito profissional nas ilhas.

Embora só aos 19, 20 anos tenha despertado por completo para a música tradicional cabo-verdiana, ouvi-la hoje parece desmentir a sua própria história de vida. Até porque seria insuficiente dizer que Lucibela canta como se tivesse nascido com mornas e coladeiras a substituir-lhe o primeiro choro. É mais do que isso. Lucibela canta como se não pertencesse a este tempo, como se a limpidez da sua voz fosse demasiado pura para se sujar com algo tão mundano quanto ter de pertencer a uma época – qualquer que ela seja.

Se era já essa qualidade que ressaltava das suas apresentações ao vivo, nada muda de substancial no classicismo do seu primeiro álbum, Laço Umbilical. Não que tenha sido fácil conservar essa característica do seu canto e conjugá-la com a vontade de cantar reportório inédito. “Foi um pouco difícil, tive de correr atrás [dos compositores]”, confessa. “Houve muita gente a quem enviei várias mensagens e telefonei, mas que nunca me chegou a dar as músicas”, lamenta. Não por qualquer ideia de boicote à estreia discográfica ou à carreira da cantora nascida em São Nicolau, em 1986. Mas porque, com a passagem dos anos, foram desaparecendo os autores de mornas e coladeiras, capazes do gesto ousado de acrescentar ao reportório tradicional, sem lhe ferir a matriz.

Foi preciso insistir durante quase dois anos para Lucibela conseguir reunir, por fim, um conjunto de temas que pode reclamar como seu. Mas valeu a pena. Basta ouvir o belíssimo tema título, saído da pena de Betu, morna com um suave travo brasileiro, que quase se podia imaginar nascida numa viagem de Marisa Monte ao arquipélago. E só a teimosia da cantora lhe permitiu gravar estes inéditos de Betu, Nhela Spencer, Mário Lúcio, Jorge Tavares Silva e Elida Almeida, ao lado de clássicos de Manuel de Novas (um dos autores de eleição de Césaria Évora) ou o tema de autor incógnito Chica di nha Maninha, que descobriu ao participar no espectáculo de homenagem a Alcides por ocasião da reedição de Pensamento, o álbum que o filho de Bana lançou tinha a cantora dez anos. “Ouvi, adorei a música, comecei a cantá-la e apaixonei-me”, explica. Tão simples quanto isto.

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O próprio caminho

A opção de Lucibela por um género tradicional, caído em desuso entre a maioria dos novos intérpretes – mais interessados em desbravar novos caminhos e inventar novas linguagens para a música cabo-verdiana –, tem levado às inevitáveis comparações com Cesária Évora. Algo que a cantora enxota com a palavra “absurdo”. “Para chegar onde a Cesária chegou há muito caminho para andar. Quero seguir o meu próprio caminho e ter o meu próprio sucesso – se assim as pessoas entenderem. E quero chegar lá pelos meus pés.” Não caindo no erro de achar que pode existir uma segunda Cesária, não é possível negar, por outro lado, que há em Lucibela a assunção de um legado. Precisamente por haver na sua música uma semente de continuidade.

Continuidade não significa, no entanto, redundância. Apesar desse compromisso total com a sonoridade que mais se confunde com a essência cabo-verdiana, Lucibela canta histórias doridas que falam da morte trágica de uma criança caída de uma ravina ou de um pescador desaparecido no mar alto, feito alma penada e chorado pela mãe à beira-mar; mas canta também os “homens africanos que querem estar com uma Bia aqui, uma Nandinha ali e uma Ana acolá” – que é, na verdade, canção em prol da prevenção de doenças sexualmente transmissíveis –, o magnetismo das paisagens das ilhas, as preces rogadas à chuva para que caia e ajude os agricultores com o seu ganha-pão ou as mulheres-guerreiras que criam os filhos sozinhas.

“Essa música [Dona Ana, de Manuel de Novas] lembra-me a minha mãe porque, tal como diz a canção, desde que eu era pequenina foi sempre ela e nós os cinco”, recorda Lucibela. “Ela cuidava de tudo – tratava da casa, dava-nos escola, alimentava-nos, dava-nos tudo. Ao cantar essa mulher que se levanta cedo, que vai de manhã à noite atrás de comida e de petróleo, é da minha mãe que me lembro.” A mãe que trauteava mornas em casa quando Lucibela ainda não lhes prestava grande atenção. Talvez por isso tenha seguido a via da música tradicional. Porque não faltam razões a Lucibela para, através da música, se religar com o passado.

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