“Vai obrigar-nos a reavaliar muitos dos signos das grutas paleolíticas”

António Martinho Baptista foi director do Centro Nacional de Arte Rupestre (1997-2007) e do Parque Arqueológico do Vale do Côa e do Museu do Côa, entre 2012-2017.

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O arqueólogo António Martinho Baptista Paulo Pimenta

Pedimos ao arqueólogo António Martinho Baptista para comentar a descoberta de pinturas de neandertais no interior de grutas espanholas, com cerca de 65 mil anos.

Até agora, a nossa espécie, o Homo sapiens, era a única a que se atribuía a autoria de pinturas rupestres, e bastante mais recentes do que 65 mil anos. As mais antigas eram as de Chauvet Pont d’Arc, gruta descoberta em França em 1994, com cerca de 32 mil anos. Para se ter uma ideia do que isso significa, as extraordinárias pinturas da gruta de Lascaux (França) têm 18 mil e as de Altamira (Espanha) 15 mil anos.

Mas, em 2014, anunciou-se que as pinturas rupestres mais antigas estavam, afinal, fora da Europa, em várias grutas na ilha indonésia de Celebes: ainda assim, têm cerca de 40 mil anos, segundo datações com um novo método, consistindo em 12 stencils (impressões em negativo) de mãos, em que se espalhou tinta numa rocha contra a qual a mão foi colocada, e ainda dois animais.

Ora a nossa espécie só chegou às portas da Europa há cerca de 40 mil a 45 mil anos. E os neandertais só viveram na Europa e Médio Oriente (nunca na Ásia), além de que se duvidava de que alguma vez tivessem inventado manifestações artísticas, como nós. É por isso que as pinturas com 65 mil anos de neandertais encontradas em grutas espanholas não deixam de ser, como diz António Martinho Baptista, “uma pequena/grande revolução nos estudos da arte das origens”. A maior importância dos signos de carácter abstracto que eles nos deixaram, frisa o arqueólogo, “é conceder aos neandertais a capacidade de abstracção necessária para a formulação da invenção da simbólica”.

Para si, os artigos científicos agora publicados, que apresentam os neandertais como os primeiros artistas de todos já há cerca de 65 mil anos, trazem realmente uma novidade ao debate sobre a origem do pensamento simbólico e da expressão artística nos humanos?

Não são uma novidade enquanto demonstração de que os neandertais tinham um “pensamento simbólico”, já que, enquanto sapiens, isso me pareceria uma evidência, aliás um dado adquirido na investigação arqueológica das últimas décadas. São, no entanto, mais um importante contributo para a afirmação de que aquilo a que chamamos (impropriamente?) arte, é um dos principais factores de caracterização do género Homo. Mas se tomarmos em conta que as datações indirectas (porque são de calcites carbonatadas cobrindo pinturas, o que lhes fornece uma idade mínima) agora atribuídas através do urânio-tório, fazem recuar em mais de 20 mil anos a cronologia das mais antigas manifestações artísticas que até agora eram atribuíveis ao Aurinhacense, não deixa de ser uma pequena/grande revolução nos estudos da arte das origens.

Olhando para as pinturas atribuídas agora aos neandertais em grutas em Espanha, como caracterizaria a arte desta espécie humana? O que pode dizer-se, ainda que genericamente, do estilo deles?

Estas pinturas agora apresentadas não são figurativas, enquadrando-se naquilo a que genericamente chamamos “signos” na tipologia da arte paleolítica. Estes signos são de carácter abstracto e penso que a sua maior importância é conceder aos neandertais a capacidade de abstracção necessária e suficiente para a formulação da invenção da simbólica. Assim, mais do que chamarmos a isto arte, seria preferível falarmos para já de “grafismos”, já que desconhecemos o seu significado mais profundo.

Um aspecto importante que estes resultados agora levantam é que talvez já não nos espantemos tanto com as datações aurinhacenses (mais de 32 mil) dos notáveis frescos rupestres da gruta Chauvet Pont d’Arc (França), que originaram alguma polémica devido ao seu estilo de um evidente e bem adquirido naturalismo e com soluções gráficas esteticamente muito avançadas.

Por outro lado ainda, isto vai obrigar-nos a reavaliar muitos dos signos das grutas paleolíticas que poderão assim constituir a primeira (e longa) fase da chamada arte das grutas. Não deixa por isso de ser curioso que, cumprindo um périplo de mais de 400 séculos (a aceitarmos estas datações agora reveladas), indo a simbólica rupestre da abstracção ao naturalismo com todas as suas cambiantes, a arte pós-glaciar volte ela própria aos esquemas abstractos das origens que na Península Ibérica constituem a arte esquemática das nossas sociedades neolíticas e calcolíticas. Parece aliás ser um fenómeno comum também à arte da nossa própria história artística que a partir do século XIX começa gradualmente a abandonar o realismo e o naturalismo, primeiro com os impressionistas e depois com todo o experimentalismo que caracteriza a arte do último século.

Já muito se falou da arte rupestre do vale do Côa, feita sem dúvida pela nossa espécie, os humanos modernos. Nunca é de mais lembrar por que é que as gravuras paleolíticas do Côa, em rochas ao ar livre, são únicas. O que sabemos hoje sobre elas e há novidades científicas?

Desde logo continua ainda hoje a ser o mais importante conjunto mundial de arte paleolítica ao ar livre com conjuntos de uma enorme qualidade estética. Isto alterou completamente o paradigma de que a arte paleolítica europeia era uma arte das grutas (ou Arte das Trevas). Ao invés, o Côa demonstrou que a arte paleolítica era também uma arte dos espaços abertos, ou seja, uma Arte da Luz.

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Gravuras no vale do Côa Nelsom Garrido

E cronologicamente conseguimos determinar que o “ciclo” rupestre paleolítico do Côa se distribui no tempo longo entre o Gravetense, há mais de 25 mil anos, caracterizado pelas picotagens profundas e pela densidade de sobreposições das gravuras nos mesmos painéis (o que se tornou quase uma imagem de marca do Côa) e o Magdalenense, o último período do Paleolítico Superior, caracterizado pela quase exclusiva presença das incisões (linhas mais finas e hoje muitas delas quase imperceptíveis). E curiosamente com muito pouca presença de signos não figurativos – é uma arte obsessivamente zoomórfica.

Talvez a principal novidade hoje seja a contínua ampliação dos conjuntos gravados que vão muito para além da área do Parque Arqueológico e a cada vez maior afirmação de um vigoroso ciclo rupestre Gravetense (e isso tem contribuído para a revitalização da arte Gravetense na Europa paleolítica) no nosso território mais interior, centrado no Côa e Douro, mas com exemplos já conhecidos nos vales do Sabor, no Baixo Tua, no Zêzere indo até ao Ocreza, no Médio Tejo.

Já se sabe quando é que os primeiros humanos modernos chegaram ao vale do Côa?

As mais recentes escavações da equipa do Parque Arqueológico do Vale do Côa, nomeadamente no sítio da Cardina, têm vindo a demonstrar a presença de uma indústria lítica [fabrico de ferramentas de pedra] atribuível ao Paleolítico Médio, portanto ainda eventualmente dos neandertais. Se as mais antigas datações (estilísticas) no vale do Côa não vão para além de 30 mil anos, começam a aparecer as primeiras evidências [ferramentas e estruturas como pequenas fogueiras] de que há ocupações humanas anteriores [em escavações coordenadas pela equipa do arqueólogo Thierry Aubry]. Seria muito importante que estes trabalhos continuassem com mais intensidade e fossem até ampliados a outras zonas da região. Isto implica evidentemente que parte da exposição teórica patente no Museu do Côa deva ser rapidamente actualizada.

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